“Doroteia”, obra de Nelson Rodrigues escrita em 1949, com montagem dirigida e encenada por Jorge Farjalla, volta aos palcos do Rio para sorte e privilégio do público carioca. A peça é belíssima em todos os sentidos, a começar pela direção. As opções de Farjalla que, para citar um exemplo interessantíssimo, insere um coro masculino batizado de “homens jarro”, foi uma tirada de gênio. O coro, com direção musical assinada por JP Mendonça, é utilizado para marcar a presença masculina tal qual uma assombração que persegue as mulheres que protagonizam o enredo rodriguiano.
Segundo o mito familiar narrado por Dona Flávia, vivida por Rosamaria Murtinho, as mulheres da família têm um defeito visual e não veem os homens. Seus noivos, portanto, são invisíveis. As mulheres da família sofrem a “náusea”, que as acomete na única noite de núpcias de sua vida. Logo, não sentem prazer carnal. A náusea, portanto, seria algo esperado com ansiedade por todas as mulheres, o que as garantiria como idôneas, castas e puras. A beleza é o grande vilão dos personagens do enredo de Doroteia.
A indumentária do coro, que vem com uma máscara negra na cabeça tapando o rosto, confere um efeito assustador, quando visto de longe: os homens estão posicionados nas escadas do Teatro em grande parte da peça (mas se movimentam, entram no palco, interagem com as protagonistas), e de longe só se vê a roupa e a cartola sobre suas cabeças. É como se não possuíssem rosto, como se, de fato, fossem invisíveis para todos nós. A ideia toda é muito bem executada. Acentua ainda mais o tom onírico e surrealista já presente no texto. A presença masculina caracterizada dessa forma ganha um viés ora assustador, ora desejável, o que é próprio dos perigos do inconsciente (já apontados por Freud e a psicanálise, e trabalhados dramaturgicamente com brilhantismo por Nelson Rodrigues).
Mas não é apenas o texto fantástico e a direção de Farjalla que tornam a peça excelente (e esses dois quesitos já não seriam pouco). A atuação de todo o elenco é irretocável. Rosamaria Murtinho, muito bem caracterizada como Dona Flávia, a matriarca megera que odeia a beleza e faz um culto carola e fanático à feiúra, dá um show de interpretação, utilizando o humor e a ironia para transformar qualquer peso do personagem em algo leve e palatável (até mesmo simpático, na medida do possível). Não foi à toa que recebeu os prêmios Cenym e Nelson Rodrigues de melhor atriz.
Letícia Spiller, por sua vez, reitera que não é apenas uma atriz bela e que tem talento de sobra para um papel difícil. Tampouco foi à toa que recebeu o prêmio Nelson Rodrigues. Completando o elenco, Alexia Deschamps, Dida Camero, Anna Machado e Jaqueline Farias estão ótimas. Dida, em especial, encarnando a vizinha, dona Assunta da Abadia, em suas rápidas aparições, traz uma energia que torna os personagens ainda mais grotescos e absurdos, sem perda da verossimilhança inerente ao texto rodrigueano e acentuando o humor rasgado, exagerado, coerente com a personagem.
O espetáculo trata da relação entre Dona Flávia e a ex-prostituta Doroteia, que busca guarida nas parentes religiosas e frustradas. A relação entre a ex-prostituta e Dona Flávia vira um combate feroz e perigoso entre a beleza e a feiúra. A peça ficou em cartaz no Rio, em fevereiro e março de 2016, e chegou a visitar Uberlândia, Araxá, Salvador, Recife e Maceió, reestreando em janeiro no Teatro de Arena do Sesc Copacabana, onde ficará em cartaz até fevereiro. Trata-se de uma montagem imperdível. Além dos prêmios recebidos por Rosamaria Murtinho e Letícia Spiller, Jorge Farjalla também recebeu o prêmio Nelson Rodrigues de melhor direção.
A cenografia de Zé Dias, com folhas secas rodeando a arena e galhos sobre o cenário, que, no que tange à casa de Dona Flávia, é minimalista como sugere ser o lugar onde moram (que não possui quartos, apenas salas, para evitar os perigos das tentações) também merece elogios à parte, assim como os figurinos belíssimos, sobretudo dos Homens Jarro, assinados por Lulu Arreal.
Finalmente, o texto de Nelson Rodrigues e a montagem de Farjalla são geniais e merecem vida longa na cena teatral brasileira.
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