A minissérie criada e dirigida pelos irmãos Damiano e Fabio D’Innocenzo, é uma produção que traz uma abordagem inovadora do gênero policial, mas também mergulha na profundidade sombria da psique humana.
Desde o início, a série estabelece um tom desolador ao retratar personagens e ambientes marcados pela decadência moral e física. O comentário do policial Antonio Bonomolo (Federico Vanni)– “”Temos o mal sobre nós há vinte anos… E estamos sujos há vinte anos.” – sintetiza perfeitamente a ideia central: todos os envolvidos na história carregam consigo cicatrizes, segredos e pecados que os tornam prisioneiros de suas próprias escolhas. Essa “sujeira” não é apenas simbólica; ela permeia literalmente as vidas dos protagonistas, como evidenciado pelas condições precárias das periferias romanas e pelas cenas explícitas que revelam o estado físico e emocional deteriorado do policial Enzo Vitello.

O uso de imagens cruas, como uma cena da colonoscopia, demonstra o compromisso dos diretores em explorar o interior obscuro de seus personagens sem filtros ou metáforas. Esse recurso visual reforça a ideia de que a narrativa não busca apenas contar uma história, mas imergir o espectador em um universo onde nada está escondido, nem mesmo os aspectos mais repulsivos da existência humana.
Enzo Vitello: Um anti-herói sem redenção

Enzo Vitello, interpretado por Filippo Timi, é um dos elementos mais impactantes da série. Ele representa o arquétipo extremo do policial corrompido, mas vai além disso ao incorporar um ser humano completamente falho, cujas ações são motivadas por egoísmo e desespero. Sua relação com a filha Ambra (Carlota Gamba), uma jovem viciada, é particularmente perturbadora. Ao comprar drogas para manter algum tipo de conexão com ela, Vitello expõe sua incapacidade de enfrentar questões fundamentais sobre paternidade, culpa e responsabilidade. A revelação no episódio 4 (Porte/Portas) sobre o motivo pelo qual ele abandonou Ambra quando criança solidifica ainda mais a impossibilidade de qualquer tipo de redenção para o personagem.
Essa trajetória descendente contrasta com outras séries policiais, como True Detective, nas quais os protagonistas frequentemente experimentam algum grau de transformação ou epifania. Em Dostoyevsky, no entanto, a jornada de Vitello é inequivocamente rumo ao abismo, sem esperança de retorno. Isso reflete uma visão pessimista da natureza humana, sugerindo que certas feridas são irreparáveis.
Ironia e humor negro como contrapontos

Apesar do tom geralmente sombrio, a série introduz momentos de ironia e humor negro que funcionam como válvulas de escape para o espectador. A cena em que Vitello pede o “quarto mais barato e sujo” em um hotel de má reputação é um exemplo claro dessa estratégia. A troca irônica entre o protagonista e a recepcionista subverte as expectativas, ao mesmo tempo que reafirma a futilidade de tentar escapar do ambiente degradante que cerca os personagens.
Os títulos dos dois últimos episódios – Mai vista stagione peggiore e Non siate crudeli con un finale – também parecem brincar com a própria proposta narrativa da série. Eles podem ser interpretados como uma forma autodepreciativa de reconhecer o desconforto que a minisserie provoca, enquanto simultaneamente desafiam o espectador a questionar suas próprias expectativas sobre histórias policiais convencionais.

O título da série, inspirado no escritor russo Fiódor Dostoiévski, sugere uma intenção deliberada de evocar temas clássicos da literatura universal, como o conflito entre bem e mal, a culpa e a busca por significado em um mundo caótico. No entanto, a referência funciona de maneira irônica, já que o assassino em série, apelidado de “Dostoyevsky”, escreve cartas que misturam pretensões literárias com uma ingenuidade quase infantil. Frases como “Os liberto desta enfermidade absurda que é a vida” ecoam conceitos existenciais, mas são apresentadas de forma grotesca e simplista, destacando a distância entre grandes ideias e a realidade brutal retratada na série.
Além disso, a comparação entre Vitello e o assassino serve como um espelho distorcido, levantando questões sobre até que ponto o protagonista difere do criminoso que persegue. Ambos estão imersos em mundos de violência e desesperança, embora suas motivações possam variar.

Os irmãos D’Innocenzo demonstram habilidade técnica ao utilizar planos-sequência e closes intensos para criar uma atmosfera opressiva. A câmera acompanha Vitello em sua busca incessante, aproximando-se de seu rosto para capturar cada traço de angústia, cansaço e determinação. Essa proximidade física com os personagens força o espectador a se envolver emocionalmente com suas lutas internas, mesmo que essas lutas sejam repulsivas ou incompreensíveis. O design de produção merece destaque, especialmente na representação das paisagens urbanas decadentes. Assim como o corpo de Vitello é “escarpado e desnudo”, os cenários refletem essa mesma crueza, criando um paralelo visual entre o ambiente externo e o estado mental dos personagens.
Dostoyevsky subverte muitos dos clichês associados ao gênero policial tradicional. Em vez de focar na resolução do caso ou na catarse proporcionada pela captura do criminoso, a série prioriza a exploração psicológica do investigador. O antagonismo entre Vitello e o agente Fabio Bonocore adiciona uma camada extra de tensão, mas a verdadeira batalha ocorre dentro do próprio protagonista, que luta contra seus demônios pessoais enquanto tenta dar sentido à sua missão. Essa abordagem pode alienar alguns espectadores acostumados a narrativas mais convencionais, mas é exatamente esse risco que torna a série tão fascinante. Ela desafia convenções e obriga o público a confrontar verdades incômodas sobre a natureza humana.
Dostoyevsky é ousada e provocativa, que transcende as fronteiras do gênero policial ao mergulhar nas profundezas mais sombrias da condição humana. Para aqueles dispostos a embarcar nessa jornada de obscuridade, a recompensa é uma reflexão profunda sobre temas universais como culpa, redenção (ou sua ausência) e o legado destrutivo do mal.