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“A fórmula preferida do Professor” reflete sobre perda, memória e a magia da matemática

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Um velho docente de matemática, uma empregada doméstica e o pequeno filho de dez anos formam a trinca protagonista de A fórmula preferida do Professor, romance que fez decolar a carreira internacional da japonesa Yoko Ogawa. Lançado por aqui pela Estação Liberdade, o livro foi um best-seller instantâneo no Japão quando de seu lançamento em 2003, onde acumula mais de quatro milhões de exemplares vendidos.

No centro da narrativa está este professor, um idoso que em nenhum momento conhecemos seu nome, um protagonista idiossincrásico, que por causa de um acidente perdeu sua memória. Incapaz de recordar nada de seu presente, a não ser por 80 minutos, tempo este que dura sua memória, com a exceção todos de todos os teoremas e fórmulas matemáticas que descobriu antes de seu acidente. Vive recluso em casa, dedicando a maior parte de seu tempo a resolver desafios matemáticos propostos por revistas especializadas. A autora usa a fragilidade do personagem para desconstruir a ameaça que muitos sentem pela matemática, e transforma o ódio de tantos estudantes numa passagem afetiva de quem trafega pelo universo das fórmulas e dos números com o mesmo entusiasmo de uma criança num parque de diversões.

Por ser um sujeito de trato difícil, nenhuma empregada contratada para limpar a casa e preparar suas refeições perdura no serviço por muito tempo. Ao conhecer o filho de uma delas, um perspicaz garotinho de dez anos de idade, o Professor irá revelar que, tanto quanto pela matemática, ele também é capaz de nutrir outra paixão incondicional: por crianças.

Ao longo das páginas vamos descobrindo essa história de amizade, um curioso encontro de gerações, mas que conseguem criar um vínculo especial através dos números. Para ter uma ideia, Raiz – o apelido que o menino ganha do Professor em referência à raiz quadrada – irá absorver não só o amor por contas e equações, como também valores sobre respeito às diferenças, amizade e tolerância.

Fiquei maravilhado com a leitura, tanto pela história, agradável, doce e delicada, como pela maneira que Ogawa a narra. Seu estilo é simples, mas elegante, cheio de calor e sensibilidade que uma leitura deliciosa.  A história é narrada em primeira pessoa pela empregada, que nos faz participar do difícil cotidiano seu dia com o professor e como pouco a pouco a matemática entra na sua vida. Através do que nos conta, conhecemos este singular personagem em profundidade, descrevendo o professor com um carinho que desde o primeiro momento nos passa um sentimento de proteção que ela tem por ele e nos proporciona suavemente este afeto.

Cena da adaptação para o cinema em 2006, dirigida por Takashi Koizumi.

Mas, com certeza, o que mais me atraiu é o uso da disciplina terror de tantas pessoas. A matemática é o fio condutor da narrativa, se temos um professor, suas exposições são de grande importância na história. Cada momento de sua vida, o personagem utiliza as cifras algébricas e aritméticas e junto aprendemos um pouco mais sobre os números perfeitos, os primos, integrais, geometria, etc. E acredito que os leitores serão atraídos pelos cálculos e fórmulas apresentadas. É um tema tratado com tal sensibilidade e naturalidade, em uma nova faceta que converte a matemática em um significado bem maior do que aquelas apresentadas nos bancos escolares. Em alguns momentos, fiquei desejando ter a mesma capacidade do personagem-título para encontrar uma correspondência numérica em tudo que acontece em sua vida e se sentir feliz por isso, em meio ao seu problema de memória.

Referências ao beisebol são bastante utilizadas, esporte que tanto o professor como Raiz compartilham, ambos fãs da equipe dos Tigers,mas com anos de diferença, já que o ancião só recorda os jogadores que formavam parte de uma planilha numérica que construiu antes que perdesse a memória. Como também a costumes e festividades nipônicas, devidamente explicadas em notas de rodapé para ajudar um pouco mais sobre uma cultura tão interessante como a japonesa.

Sem nenhuma dúvida, A fórmula preferida do Professor é um livro que recomendo a leitura, uma narrativa que encanta pela maneira que apresenta a amizade e o amor, que fala de humildade e humanidade, tão preciosa nos dias atuais e sobretudo, nos ensina a tentar superar as dificuldade iniciais, tanto as pessoais como as cognitivas, para no fim desfrutar o que cada um de nós escondemos em nosso interior.

A AUTORA

Yoko Ogawa nasceu em Okayama, Japão, em 1962. A carreira literária precoce ocorreu de forma natural, por sempre ter sido uma leitora voraz, com especial apreço por clássicos japoneses, pelo Diário de Anne Frank e por obras de seu compatriota Kenzaburo Oe. Estreou em 1988, com Agehacho ga kowareru toki [A decomposição da borboleta], pelo qual obteve o prestigioso Prêmio Kaien, voltado a novos escritores. Prêmios, aliás, não faltam em sua carreira, valendo menção o Akutagawa pela novela Ninshin karenda [Diário da gravidez], o Izumi Kyoka por Burafuman no maiso [O enterro de Brahman], e o Tanizaki por Mina no koshin [A marcha de Mina]. Por A fórmula preferida do Professor, ela ainda arrebatou os prêmios Yomiuri e o da Sociedade Nacional de Matemáticas. Yoko Ogawa vive em Ashiya, província de Hyogo — nas proximidades de Kyoto — com o marido e o filho.

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Por
Cadorno Teles -

Cearense de Amontada, um apaixonado pelo conhecimento, licenciado em Ciências Biológicas e em Física, Historiador de formação, idealizador da Biblioteca Canto do Piririguá. Membro do NALAP e do Conselho Editorial da Kawo Kabiyesile, mestre de RPG em vários sistemas, ler e assiste de tudo.

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