Quando um espetáculo procura tratar do colapso do eu através da perda paulatina da memória característica de doenças neurodegenerativas, além de outras perdas e mudanças comportamentais igualmente características dessas condições médicas, já podemos ficar mais interessados, pois estamos falando de um tema instigante por si só e que, além disso, nos tempos atuais, tem chamado ainda mais atenção à medida em que a população do mundo vem se tornando mais idosa, com o aumento da expectativa de vida.
Agora, quando o espetáculo faz isso de maneira primorosa, com texto, direção e atuação excelentes, aí sim é que o interesse deve ser total. Esse é o caso da excelente A outra casa, que acaba de estrear no Teatro do CCJF. Aqui, acompanhamos a personagem Juliana, uma médica que dá conferências sobre novas medicações pesquisadas para o tratamento de processos demenciais e que, em uma dessas apresentações em um resort, é acometida por um episódio de desorientação extrema, típico no início de tais doenças. Ela tem um marido, uma filha e uma médica, suspeita que a causa de sua desorientação seja um tumor cerebral, mas, sem que possa aceitar e entender de imediato, há outro fator que talvez esteja na base do vivido desesperador e que se torna um divisor de águas em sua vida.
O texto, de Sharr White, com tradução de Diego Teza, é interessantíssimo e muito bem construído, porque além de tratar de uma questão complexa, a perda gradativa e contínua do eu ou de um senso de eu através da progressão de um processo demencial, o faz através de uma complexidade psicológica que não deve ser menosprezada. Assim, não cai no clichê nem esbarra em uma construção formal cujo hermetismo afastaria qualquer tipo de identificação e compreensão da vivência de Juliana. Ao contrário, o texto permite a nomeação de alguns sentimentos que seriam, se não inomináveis, talvez inconfessáveis.
Isso ocorre mais especificamente nas descrições que a personagem Juliana faz ao relatar suas impressões acerca de uma curiosa e incomum personagem que está presente na plateia de médicos durante a conferência onde irá viver o episódio confusional. Juliana vai descrevendo as sensações que a levam a tecer provocações e piadas dirigidas a essa personagem incômoda e também as sensações desencadeadas a partir daí. A forma como a personagem tece tais descrições torna esse momento muito similar a um relato de uma sessão de psicanálise, dadas a precisão com que Juliana descreve o que vai sentindo e a franqueza (que não exclui o desconforto) consigo própria ao falar do que sente. É aqui que considero que o espetáculo cumpre uma das diversas funções que podemos atribuir a qualquer objeto de cultura ou obra de arte, e das que mais me interessam: a ampliação do campo da experiência e do reconhecimento dos meandros dos nossos sentimentos mais complexos.
É quando tomamos contato com vivências pelas quais nunca passamos que podemos ampliar nosso campo de experiência e descobrir dimensões do vivido que ainda não chegaram até nós, mas isso também só pode acontecer se tais vivências são bem descritas e bem construídas. Por outro lado, tomar contato com os próprios sentimentos, identificar os disparates que muitas vezes movem nossos atos e gestos, definir, dentro de um gama complexa e diversificada, essa ou aquela sensação, depende de uma capacidade de nomeação sui generis. É exatamente isso que o texto de Sharr White nos proporciona em A outra casa.
A direção, de Manoel Prazeres, está impecável diante de um texto denso e de uma dramaturgia que consegue habilmente situar o espectador no ponto de vista da personagem, isto é: assim como Juliana está atrás de si mesma, da pista perdida do que é, do que foi e do que está se tornando, em busca de seus rastros, de sua memória e do sentido de tudo o que aconteceu e vem acontecendo, construindo esse caminho de modo tortuoso e doloroso, também o espectador está aos poucos compreendendo a paisagem dessa história e acumulando pistas que possam situá-lo na trama psicológica em questão.
Finalmente, todas essas qualidades inerentes ao texto perderiam muito não fosse a tremenda interpretação de Helena Varvaki no papel de Juliana. Sua atuação é incrível, temos uma gigante em cena, e devemos agradecer, enquanto espectadores, por sua capacidade de nos presentear com belíssima atuação, que, certamente, exige demais da atriz. Helena não foge da raia e é incrível a maneira como modula as emoções e como vive intensamente a experiência da protagonista, sobretudo nos momentos de consulta com sua médica, nos quais relata o desespero sentido quando sua filha sumiu, anos antes. Há uma entrega total de Helena Varvaki em relação ao personagem, que, teoricamente, já é crível e verossímil, mas ganha ainda maior credibilidade e verossimilhança quando se incorpora nessa excelente atriz. Mas Gabriela Munhoz, que ora faz a médica, ora a filha, ora a mulher, também está muito boa, imprime força às suas personagens e, sim, contracena à altura. Alexandre Dantas, que faz o desesperado marido e médico Ian, também está muito bom, tentando dar conta de uma esposa que se equilibra na corda bamba da lucidez. Completando o elenco, temos Daniel Orlean, como Richard e o homem.
A peça fica em cartaz somente até 3 de abril.
Ficha Técnica:
Texto: Sharr White
Tradução: Diego Teza
Direção: Manoel Prazeres
Assistente de Direção: Daniel Orlean
Elenco: Helena Varvaki, Alexandre Dantas, Gabriela Munhoz, Daniel Orlean
Cenografia: Doris Rollemberg
Figurinos: Leticia Ponzi
Iluminação: Renato Machado
Trilha sonora: Rick Yates
Captação de imagens: Rodrigo Turazzi e Renaud Leenhardt
Edição de vídeo: Rodrigo Turazzi
Fotografias: Guido Argel
Programação visual: Flavio Luiz Pereira
Direção de produção: Rafael Fleury e Manoel Prazeres
Administração: Rosa Ladeira
Realização: Helena Varvaki, Gabriela Munhoz, Daniel Orlean e LMPR
Serviços Tecnológicos e Culturais Ltda
Divulgação: Lu Nabuco Assessoria em Comunicação
Serviço:
Estreia: 27 de fevereiro de 2016
Horário: Sextas, sábados e domingos às 19h
Temporada: de 27 de fevereiro a 3 de abril – EXCEPCIONALMENTE DIA 25 DE MARÇO NÃO HAVERÁ APRESENTAÇÃO
Teatro: Centro Cultural Justiça Federal
Endereço: Av. Rio Branco, 241 – Centro
Preço: R$ 40,00 (inteira) / R$20,00 (meia)
Horário da Bilheteria: de quarta a domingo, das 16 às 19h
Duração: 90 minutos
Classificação indicativa: 16 anos
Gênero: Drama
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