Isabela Penov propõe o protagonismo das mulheres no contexto do erotismo e da sexualidade

Contemplado pelo ProAC, “Do Dilúvio Entre Tuas Coxas” busca confrontar a lógica da literatura erótica e da pornografia que trata o corpo feminino de maneira objetificada 

Com dicção poética vigorosa, sempre cadenciada em miríades de imagens e potência rítmica impressionante, Isabela oferece a nós um livro rebelde, a um só tempo doce e insolente, capaz de angariar para si aquele sopro de vida com o qual se pode passear livremente por dores e gozos.”

Mar Becker (autora de “A Mulher Submersa”)

Não é de hoje que o corpo feminino vem sendo representado como mero objeto de desejo masculino, inclusive dentro da literatura, o que contribui para um imaginário opressivo e predatório à sexualidade das mulheres. 

É a partir de uma contraposição a esse cenário que a poeta, fotógrafa, atriz e professora paulistana Isabela Penov, concebe seu terceiro livro de poemas, “Do Dilúvio Entre Tuas Coxas” (OIA Editora, 88 páginas), contemplado pelo Programa de Ação Cultural da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Governo do Estado de São Paulo, o ProAC.  

Assim como em seus primeiros livros, “Aves Marias (ou a Revoada)” (Editora Patuá) e por “Compêndio para moças de olhos lânguidos”, que contou com o apoio do edital Rumos, do Itaú Cultural, em “Do Dilúvio Entre Tuas Coxas”, Penov trabalha com um forte diálogo com a perspectiva feminista contemporânea, tecendo a escrita como um meio de articulação e transformação das opressões que atravessam as mulheres. Segundo ela, “a escrita de ‘O Dilúvio’ foi estimulada pelo desejo de contribuir com a literatura erótica escrita por mulheres por meio de uma poesia centrada na experiência, no corpo e na visão feminina e feminista da sexualidade.”

Desta forma, todo o processo de criação da obra envolveu um resgate ao corpo da mulher no sentido sensorial, para além das zonas erógenas hiper-focalizadas pelo olhar falocêntrico. Penov buscou escrever poemas com caráter sinestésico, investigando umidades, cheiros, gostos, pelos e outros aspectos dos desejos íntimos das mulheres. Além disso, a autora retrata relações hétero e homossexuais, bem como a masturbação e a auto-descoberta dos corpos femininos. “Do Dilúvio Entre Tuas Coxas” busca ampliar uma visão do erotismo que traz a mulher no lugar de sujeito, não mais como objeto.

“Para isso, dividi o livro em quatro partes”, conta Penov “a primeira, Minhas Umidades nas Suas, trata exatamente das umidades, pelos, cheiros, envolvidos no sexo, e que são vistos ainda como tabu. A segunda, Carne Verbo, traça um paralelo entre o ato sexual e o ato poético. A terceira, Felix Culpa, fricciona a sexualidade e a religião, e também a experiência carnal e a espiritual. A última, Amor, Romã, traz Eros em sua manifestação mais típica, manifesto no campo do amor romântico, afetivo-sexual.”

Nesse sentido, ao falar de suas referências, a autora cita nomes relevantes na construção de uma visão autônoma e desejante da sexualidade e do erotismo feminino, como a pensadora feminista negra Audre Lorde (1934-1992), conhecida por seus ensaios sobre o desejo e a sexualidade feminina, e a poeta simbolista brasileira Gilka Machado (1893-1980), que foi a primeira mulher a publicar poesia erótica no país. Em relação à literatura contemporânea, Penov cita os livros “O Corpo Desvelado: contos eróticos brasileiros”, organizado pela pesquisadora Eliane Robert Moraes e “69 Poemas e Alguns Ensaios”, organizado por Raquel Menezes com apoio do coletivo Mulheres que Escrevem. 

Ao mesmo tempo, suas referências também envolvem os textos “A Dupla Chama”, do poeta mexicano Octavio Paz (1914-1998) e “O Erotismo”, do escritor francês Georges Bataille (1897-1962), conhecidos por investigarem o erotismo no contexto da arte e da literatura.

“Saltar de Tânatos a Eros”: a trajetória de Isabela Penov entre uma publicação e outra 

Apesar da leveza e da carga desejante que carregam os poemas de “Do Dilúvio Entre Minhas Coxas”, Penov afirma que o processo de escrita foi desafiador. “Havia acabado de sair do lançamento do livro anterior, “Compêndio para Moças de Olhos Lânguidos”, cujo eixo temático era Mulher, Loucura e Patriarcado. É um livro bastante denso, do ponto de vista temático e, talvez, técnico também, e foi escrito a partir de feridas pessoais ainda não cicatrizadas, ou seja, foi uma demanda emocional muito grande. Saí dessa paisagem para outra totalmente diferente, diria oposta: o universo da libido, da sensualidade, pura pulsão de vida”, conta.

Além disso, as duas obras receberam o apoio de editais públicos – no caso, o Edital Rumos do Itaú Cultural e o ProAC – demandando um compromisso com o cronograma a ser seguido. “Não poderia haver intervalo entre ambos”, afirma. 

Refletindo, entretanto, sobre o processo criativo como um todo, a autora traz uma visão otimista: “Essa transição foi bastante difícil, mas agora entendo como essa trajetória foi bela”. Para ela, trata-se de um movimento que mergulha sobre a dor e, depois, eleva-se à celebração do próprio corpo. 

“Agora vejo que um livro foi quase como uma continuidade do outro, mesmo sendo seu oposto, e que não foi à toa que propus esses projetos em sequência. Acredito que tenha sido um belo projeto do meu inconsciente saltar de Tânatos para Eros”, conclui.

Isabela Penov nasceu em 1986, em São Paulo, capital. É feminista, macumbeira e comunista. Entende-se como poeta desde que aprendeu a ler e a escrever, e sempre se interessou por diversas outras linguagens artísticas. Segundo ela, esse era o seu “jeito de brincar”.

Hoje, é autora de três livros: “Aves Marias (ou A Revoada)”, que saiu pela Editora Patuá, em 2018, e “Compêndio para Moças de Olhos Lânguidos”, realizado com o apoio do Rumos, do Itaú Cultural e “Do Dilúvio Entre Tuas Coxas”(OIA Editora), com apoio do ProAC. 

Penov define sua escrita como “experimental, mas não hermética”, que parte de um processo que também envolve a leitura. “Escrevo enquanto leio. Leio com um caderno de anotações ao lado, e uma única página lida pode render uma dezena de páginas anotadas.” Segundo ela, essas anotações podem acontecer em meio ao trânsito no metrô,  durante o almoço, e, até mesmo, na calçada (“para anotar algo no bloco de notas do celular, que é onde praticamente guardo todo o rascunho dos livros e ideias esparsas.”)

As leituras que deslumbram Penov são diversas, e, às vezes, traçam pouca relação com seus projetos de escrita. “Isso inclui notícias, filmes, peças, cenas que vejo na rua, histórias que ouço”, conta. “O que quero dizer, basicamente é que, quando estou escrevendo um livro, é como se tudo no mundo me  falasse sobre ele num dialeto simbólico particular. Isso é maravilhoso, e exaustivo, às vezes. É como se eu simplesmente não tivesse outra escolha e não pudesse pensar em mais nada.” 

Além da escrita, ao longo de sua vida, Isabela Penov aventurou-se pelo canto, pelo violão, pelo palco e pela fotografia. É formada em Arte e Teatro pela UNESP e, há mais de 10 anos dá aulas de Artes e Teatro em escolas públicas e particulares de São Paulo. Hoje, cursa pós-graduação em Literatura, Arte e Filosofia pela PUC-RS.

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