Penso às vezes nas vozes de tratamento. Da primeira pessoa à terceira pessoa. Ainda boto no assunto a relação dessas vozes com algum tipo de animal, pois os bichos com a gente estabelecem graus diferenciados de contato, um tipo de amizade humana-bichana. Vejo o cachorro ou abreviado cão como sempre a 1ª pessoa. Como se ele, o melhor amigo do homem, estivesse narrando na primeira pessoa mais colada ao nível do afeto. Sem qualquer tipo de distância entre o locutor narrador e o acontecimento que se narra.
O futebol se narra na terceira pessoa. Como seria o maior espetáculo da terra sendo narrado na primeira pessoa? Mas penso no gato e confesso que fico confuso com o bicho quando reflito sobre sua condição narradora. Ele fica de terceira pessoa ou, em alguns momentos, só, quando quer estabelecer a primeira pessoa? Se for assim, penso, que o gato trata-se de um bichano experimental, que consegue, pela sua afetividade, modular vozes ao entorno de acordo com sua temperança do momento. Porque de ensimesmado o gato não tem nada. O ser é super participativo e interativo no meio narracional.
Este palavra experimental é uma boa palavra para descrever o livro do escritor e cronista Alexandre Brandão, O Bichano Experimental, lançado recentemente pela editora Patuá. A crônica de abertura fala deste bicho que tem certa compleição ao status, cult, de autor/autoria, até pelo caráter de observação dele ao homem de perto que nutre por sua persona relações de amor e ódio.
Brandão até faz uma certa referência ao bichano ser um excelente revisor, com olho de gato, não deixando passar nenhuma mosca pelas linhas, pelas frases, no caso do gato teriam que ser lapidares, pelo seu tom de ironia ferina. Caso o leitor preste a devida atenção, o gato seria um depurador ou defumador de palavras, escolhendo ao seu gosto, o momento exato de usá-las, gato-mia-gato-fala.
O cronista usa o gato de forma a rondá-lo na sua forma de ser e expressar. Penso quando alguém muda de assunto, e vejo o gato dando o rabo e torneando-se para ir embora deixando o ouvinte a afetar sozinho. Pois as lacunas, tanto do pensamento, quanto do narrador são a base de um bom texto, aqui digo não apenas sombreados de sentidos, desvãos da linguagem. É também, e isso o cronista faz à perfeição; tornear o assunto em seus múltiplos níveis de correlacionabilidade ou filigranar níveis de interpretação indo buscar em outros temas assuntos que possam conversar com o mote principal.
Alexandre estabelece seu cerne, mas vai através do rico manancial de casos e “causos” da vida, tecendo ou urdindo com um belo domínio da linguagem coloquial e culta, costurando a trama da vida, estabelecendo conexões através do riso, do humor sutil, da graça da vida, o jogo insólito que o olhar do cronista deve apanhar de primeira.
Aí, falo da primeira pessoa que não é colada ao aspecto da contaminação do que se narra. O cronista narra uma partida com seus 11 personagens, passageiras de ônibus, poetas, memórias… revelando distâncias e proximidades como uma lente de câmera que pudesse closar/distanciar o mote ou da epiglote que tudo canibaliza, que tudo que digere, bem para transformar a vida em boa literatura.