Em 4 de março de 2023, reestreou, no Teatro Brigitte Blair, o espetáculo O cachorro que se recusou a morrer, do autor e ator Samir Murad. A direção é dele e de Delson Antunes, e a peça gira em torno das memórias trazidas por seu pai, imigrante libanês, com suas vivências de conflitos referentes a ter de viver em um mundo inteiramente novo, a constituição de família e os desdobramentos de tais experiências. Críticas à cultura machista e patriarcal – como o casamento poligâmico, possíveis efeitos disso na filha mulher (que passa por situações emocionais limítrofes, com passagem pelos antigos manicômios do Rio de Janeiro), entre outros aspectos, permeiam essa narração, que se dá não apenas pelo personagem-autor, como também por gravações de relatos de seu pai e de sua irmã, recolhidas por ele.
Se fosse para escolher o ponto alto da peça, eu diria que se dá quando, mais ao fim, à história singular e pessoal – essa que se costura entre gravações e texto falado – se une a referência àquilo que tem sido chamado de “crises migratórias” ou “crise dos refugiados”, e que alguns/as autores/as têm preferido chamar de “migrações de crise”, problematizando uma expressão que, se usada de modo acrítico, pode fazer parecer que o problema se origina exclusivamente nos povos que migram em busca de sobrevivência ou de refúgio. Esse é um problema do mundo, de todos nós, e as migrações forçadas não dizem respeito apenas àqueles que deixam seus lugares de origem, como se esse movimento nada tivesse a ver com o modo de produção capitalista e as formas cada vez mais perversas que tal sistema tem assumido ao longo dos séculos. Nesse momento do espetáculo, há algumas imagens projetadas, muito bem escolhidas, de situações terríveis referentes a multidões buscando deixar seus países em conflito, imagens realmente impactantes que são exibidas enquanto o ator, atuando de modo mais pungente e comovido, narra seu texto fazendo alusões às mortes que se dão nessas tentativas de fuga – botes que viram, familiares que se afogam por não saberem nadar e outras cenas que temos visto e ouvido em noticiários, retratos de uma tragédia que torna certos mares verdadeiros cemitérios líquidos, como também já apontou Boaventura de Sousa Santos.
Contudo, apesar de uma temática bastante interessante e urgente, não posso deixar de sinalizar que sempre me parece cansativo quando há, em um espetáculo teatral, um excesso de estímulos enviados concomitantemente ao público. Nem sempre é possível identificar o que nos cansa em alguns momentos de uma peça, mas aos poucos escrever sobre teatro e ter de refletir sobre minhas impressões fez com que eu fosse identificando o que traz cansaço, ao menos a mim, ao assistir uma peça. Para falar de O cachorro que se recusou a morrer, os momentos em que há um trabalho de corpo interessantíssimo de Samir Murad, referente àquilo que está sendo narrado pelo imigrante libanês, somado à legenda (que é necessário ler, devido ao sotaque carregado e ao fato de não haver nitidez no som – o que é esperado, são gravações caseiras), e, em outros momentos, algumas imagens projetadas, acabam sendo exaustivas. Fiz o teste, por alguns instantes, de não ler a legenda, mas de fato não conseguia entender o que era dito. Por outro lado, quando me concentrava na expressividade dos movimentos do ator, também me distraía do conteúdo do que estava sendo dito e aquilo perdia o sentido. Ora, alguém até poderia argumentar que eu não precisava me preocupar em absorver tudo, mas fato é que quando tudo é apresentado ao espectador, às vezes pode haver um cansaço inclusive em decidir no quê prestar atenção. Somado a isso, desconfio que talvez funcionasse mais se houvesse um encurtamento do tempo de narração pelo gravador, porque, apesar de ser um conteúdo valioso, em termos de encaminhamento dramatúrgico pode ser convidativo, após um tempo, à distração. E esse formato toma grande tempo da peça
Para além disso, é sempre importante dizer que migrações sempre existiram – forçadas e/ou voluntárias, uma dicotomia que, aliás, também pode ser problematizada – e que gravíssimas crises mundiais têm deixado populações inteiras em colapso. Para dar conta de povos em situações de vulnerabilidade cada vez intensas e frequentes, tratados internacionais são elaborados e ratificados, novas convenções são convocadas para revisão de estatutos, noções e conceitos, porém não têm dado conta da gravidade desse imenso problema humanitário, e a peça de Samir tem também o mérito de abordá-lo, ao estabelecer a ponte entre a história pessoal e o contexto geopolítico.
Ficha técnica
Criação, texto e atuação: Samir Murad
Direção: Delson Antunes e Samir Murad
Cenografia: José Dias
Figurino e adereços: Karlla de Luca
Iluminação: Thales Coutinho
Trilha Sonora: André Poyart e Samir Murad
Videocenário: Mayara Ferreira
Assistente de direção: Gedivan de Albuquerque
Assessoria de imprensa: Ney Motta
Programação visual: Fernando Alax
Fotos: Fernando Valle
Mídias sociais: Cia Teatral Cambaleei, mas não caí…
Cenotécnico: Mario Pereira
Costureira: Maria Helena
Produção executiva: Wagner Uchoa
Operação audiovisual: Edmar Rocha
Operação de luz: Hélio Malvino
Realização: Cia Teatral Cambaleei, mas não caí…
Serviço
De 4 de março até 2 de abril, sábados, às 20:30h, e domingos, às 19h.
Local: Teatro Brigitte Blair
Endereço: Rua Miguel Lemos, 51-H, Copacabana, Rio de Janeiro.
Próximo a Estação Cantagalo do Metrô Rio.
Informações: 21 2521-2955
Valor do ingresso: R$ 50,00 (inteira) e R$ 25,00 (meia-entrada)
Capacidade de público: 200 pessoas
Classificação: 10 anos
Duração: 75 minutos
Gênero: Drama bem humorado
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