Nosferatu faz ensaio sobre a xenofobia

Um dos pilares do expressionismo alemão, “Nosferatu” é a obra de F.W. Murnau, que, por não conseguir os direitos de adaptação de “Drácula”, romance do escritor Bram Stoker, teve os nomes dos personagens alterados. Ainda assim a produtora Prana-Film sofreu um processo por plágio, e o veredito foi cruel: além de uma altíssima compensação em dinheiro, todas as cópias do filme teriam de ser destruídas. A produtora foi à falência, tendo esse como seu único projeto. Porém, como poucas cópias sobrevieram, o longa não só virou um cult como, ironicamente, influenciou todas as adaptações de Drácula que viriam a seguir. Ganhou um remake em 1979 pelo também alemão Werner Herzog, e agora retorna pelas mãos de Robert Eggers (“A Bruxa”, “O Farol”).

Nessa nova adaptação do conto gótico sobre a obsessão de um terrível vampiro por uma mulher assombrada, acompanhamos o rico e misterioso Conde Orlok (Bill Skarsgård) na busca por um novo lar na Alemanha do século XIX. O vendedor de imóveis Thomas Hutter (Nicholas Hoult) fica responsável por conduzir os negócios de Orlok, viajando para as montanhas da Transilvânia para prosseguir com as burocracias da nova propriedade do nobre. Só que Thomas encontra ali o mal encarnado, enquanto, longe dali, Ellen (Lily-Rose Depp) é sistematicamente perturbada por sonhos assustadores que se conectam com o suposto homem que Thomas encontrará e que vive sozinho num castelo em ruínas nos Cárpatos.

Apesar de seguir fielmente à estrutura narrativa estabelecida no clássico, Eggers não deixou de acrescentar sua própria visão sobre a obra, trazendo um novo significado. Aqui, o que o diretor, também responsável pelo roteiro adaptado, quis realizar uma espécie de ensaio sobre a xenofobia. Há quem interprete que Bram Stoker estava falando claramente de um estrangeiro, indecifrável e perigoso quando descrevia Drácula. Eggers aproveita esse mote justamente para atacar a desconfiança e o medo que o europeu ou americano médio sentem em relação a quem chega de fora, tanto que a aparência da nova versão do vampiro se assemelha a um homem oriundo do leste europeu.

Eggers é reconhecido pelo seu apuro estético ao contar histórias. O trabalho sofisticado de fotografia é uma das primeiras coisas que chamam atenção em seus filmes, e aqui não é diferente. Mesmo com a escuridão predominante, o diretor de fotografia Jarin Blaschke, colaborador de longa data do cineasta, faz um interessante uso de paletas de cor que impede que o aspecto cênico caia na monotonia, ou escorregue nos clichês do breu se alternando simplesmente com tons azulados.

O elenco é outro trunfo da produção. Adequadamente escolhido, traz Nicholas Hoult defendendo com galhardia essa contraparte de Jonathan Harker (que em “Drácula de Bram Stoker”, de Francis Ford Coppola, foi interpretado por Keanu Reeves). O próximo Lex Luthor em “Superman” imprime o tom correto ao personagem, que escapou de ser retratado involuntariamente em tom caricatural, como aconteceu em algumas versões de Drácula. Quem também escapa dessa possível armadilha é Lily-Rose Depp. A jovem atriz, filha de Johnny Depp (o sobrenome não é coincidência), cria nuances em sua interpretação que a torna pujante.

Bill Skarsgård volta ao gênero terror, depois de “It: A Coisa”, mais uma vez interpretando um bicho-papão. E essa é a melhor definição para o novo vampiro, embora, ao mesmo tempo, ele apresente uma certa humanidade, justamente para se coadunar com metáfora do imigrante. O ator prova que será sempre uma boa escolha para interpretar monstros. E a escolha do diretor em não revelar a criatura ttalmente quase até o final reforça a ameaça. Do outro lado está Willem Dafoe, que interpreta com altivez o Prof. Albin Eberhart von Franz, o equivalente ao icônico caçador de vampiros Abraham Van Helsing.

“Nosferatu” pode até dividir os mais puristas. Uns, inclusive, vão reclamar do visual do vampiro, que se distingue do clássico (algo que Herzog manteve), e também da forma como ele morde suas vitimas, além de outras liberdades. Mas a preocupação do cineasta era muito mais empreender uma releitura do que fazer um tributo ao clássico (embora não deixe de fazê-lo em alguns momentos). Quem for de mente e coração aberto sairá ganhando.

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