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"O Cego e o Louco": um espetáculo sobre os limites entre entre razão e loucura

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No palco de “O Cego e o Louco”– espetáculo dirigido por Gustavo Wabner, quarta peça da Lunática Companhia de Teatro e primeiro texto em português por ela encenado, de autoria de Claudia Barral – uma relação tensa, e poder-se-ia dizer quase tirânica, é desenrolada: acompanhamos dois irmãos, em uma noite como outra qualquer, de profunda solidão compartilhada, no que parece ser uma antiga rotina de diálogo repleto de hostilidades, deboches, zombarias e algumas verdades poéticas que são desfiadas enquanto se espera a possível (mas pouco provável) visita de uma mulher.
Temos esses dois personagens que compartilham, além de uma solidão profunda, fracassos inúmeros: a impossibilidade de continuar pintando por causa da súbita cegueira, o desencontro com as mulheres e amores antigos não correspondidos, problemas no trabalho, inseguranças na vida. Nestor, pintor cego, interpretado por Alexandre Lino, irmão mais velho de Lázaro, interpretado por Daniel Dias da Silva, que, inseguro, apavorado com a vida e com cada passo que dá, cede à impetuosidade do irmão, que sempre parece enxergar muito bem adiante, apesar da ausência de visão. Sua capacidade de ver as coisas vai muito além da vidência do sentido de um órgão, referindo-se, isso sim, à capacidade de saber tudo o que acontece à sua volta, e de modo impressionante. Talvez seja por isso que Lázaro, o irmão mais novo, oprimido e subserviente, aquiesce a tudo o que o outro diz. Há uma relação complicada em pauta e muito ressentimento.

O texto de Claudia contém belas passagens, como aquela em que Nestor aponta que o que aproxima duas pessoas não são as afinidades (ou o que entendi como gostos em comum) entre elas, mas a quantidade de saudades que compartilham. Esse e outros trechos conferem riqueza ao texto e tornam a personalidade do irmão de Lázaro um pouco mais palatável.
Mas, conforme a peça avança, algumas indagações vão surgindo, uma vez que as risadas alucinadas de louco, e quem se diz louco é o irmão cego, que, por outro lado, parece ver tudo o que acontece na casa, a ponto de dar comandos ininterruptamente ao outro irmão, cujos gestos, movimentos e tons de pele de acordo com o estado emocional são notados com acuidade por aquele que nada vê. Quem seria o cego e quem seria o louco nessa relação? As fronteiras tênues entre a loucura e a cegueira vão dando seus sinais, chamando atenção para o fato de que nada parece ser tão simples e bem categorizado na relação que se deslinda no palco.
Tem-se também aí o mistério da cegueira, em que aquele que não pode ver parece mais bem dotado de discernimento e pressente melhor as coisas do que o vidente comum com um aparelho de visão que funciona normalmente mas que não confere um desenvolvimento maior de outros sentidos. Essa dúvida e esse mistério ficam claros à medida que, com convicção inabalável, Nestor, o irmão cego, parece, mais do que tudo ver, tudo saber, deixando que um par de olhos seja um mero detalhe desimportante.

Por outro lado, chama a atenção quando o irmão cego se ausenta da sala de jantar que constitui o cenário da peça e o irmão inseguro e tímido, que não crê em si mesmo e que é desvalorizado por Nestor, fala sobre ele com uma lucidez de quem não é nem cego nem louco. Mas parece que a mera presença do irmão mais velho, em uma relação tipicamente tirânica, já modifica até mesmo o tom de voz do polo mais fraco da relação, quando ele volta à sala e Lázaro interrompe sua reflexão.
Enfim, nada é tão simples quanto parece ser e as qualificações de cego e de louco, assim como as de realidade e loucura, vão acenando para as camadas de complexidade das relações consigo e com o outro. E são as belas cenas de dança que traduzem perfeitamente para uma linguagem dramatúrgica o que as palavras nem sempre conseguem alcançar: a complexidade da relação entre os irmãos, entre a cegueira e a visão, entre o ver e o saber, entre o real e o irreal. Mas não é possível dizer aqui sem que se estrague as revelações que o espetáculo vai oferecendo aos poucos.
 
Ficha técnica
Texto: Claudia Barral
Direção: Gustavo Wabner
Elenco: Alexandre Lino e Daniel Dias da Silva
Figurino: Victor Guedes
Cenografia: Sergio Marimba
Iluminação: Mantovaniluz
Operação de Som e Luz: Nina Balbi
Direção de Movimento: Sueli Guerra
Direção musical: Tibor Fittel
Direção de palco: Renato Rodolfo
Estagiária de Direção: Juliana Thiré de Negreiros
Design Gráfico: Gamba Jr.
Fotos e imagens: zero8onze Photo Cine (Aguinaldo Flor / Fernando Cunha Jr.
Gravação Trilha: Musimundi (Klauber Fabre)
Locução do rádio: Germana Guilherme
Produção Executiva: Letícia Reis
Direção de Produção: Daniel Dias da Silva
Co-Produção: Cineteatro Produções
Realização: Territórios Produções Artísticas e Lunática Companhia de Teatro
Assessoria de Imprensa: Lu Nabuco Assessoria em Comunicação

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