Baco surgiu na cena causando. Chamou atenção ao lançar “Sulicídio” na internet. Com avassaladores 8 milhões de views, atacou nomes importantes do rap nacional com uma música-manifesto contra a concentração dos holofotes do mercado no Sudeste.
De fato, desde Ataliba e a Firma, passando por Gabriel o Pensador, MV Bill, Facção Central, Sabotage, RZO, Rappin Hood e Ogi – com a exceção de GOG, de Brasília, e mais alguns – conta-se a história do rap brasileiro a partir do eixo SP e RJ. Baco não é maluco, e por isso não atacou os Racionais, mas, como ele mesmo diz, no game do rap, para alcançar a atenção dos fiéis, foi necessário profanar suas divindades. E deu certo. O rapper baiano abriu caminho na selva, furou o bloqueio e conquistou a atenção do “centro”.
Três anos depois de Sulicído, lotou duas datas no Circo Voador em poucas horas. Já tinha ido na Fátima Bernardes fazer som e no Programa de Pedro Bial, ambos da Globo, dar entrevista ao lado de figuras históricas do rap nacional como Dexter e o gênio Black Alien. Ali, na vitrine maior da indústria da cultura no Brasil, Baco figurou como o “futuro” do rap brasileiro.
Baco hoje é querido pela classe média universitária branca do Rio e São Paulo, mas também por muitos jovens negros que enxergam na sua ascensão mais um passo dado, via música, na luta antirracista no Brasil. Com o lançamento do disco “Bluesman”, no final de 2018, o hype em cima de Baco colocou a Bahia no seu “devido lugar”, de protagonismo na música brasileira.
Historicamente, a Bahia sempre foi polo vital de emanação de música poderosa. Desde o nascimento do samba de roda do Recôncavo, passando por Dorival Caymmi, João Gilberto e pela aristocracia baiana da MPB. Até no rock – com Raul Seixas.
A decadência da indústria fonográfica, que não cansava de transformar em commodity genérica a magia rítmica e energética do pagode baiano e do samba reggae, embalando tudo como “axé music”, abriu espaço para a emergência da música pop de uma “outra” Bahia, que logicamente bebe no pagode e no samba, mas desemboca em nomes como o Baiana System com seu groove arrastado e no rap sincrético do próprio Baco.
A procura de Wakanda, Baco ergue seus boombaps em fusão com cantigas de roda de sua terra natal, com o funk carioca e com sonoridades regionais. Cita a Orquestra Afro-Brasileira de Abigail Moura, fala dos Capitães de Areia, de Jorge Amado, do Senhor do Bonfim e evoca constantemente o vocabulário do candomblé, colocando-o a serviço do flow urbano e mundano do rap. Sampleia “Mariguella”, o “mulato baiano”, dos Racionais, e faz os sons, imagens, palavras e gentes da Bahia entraram no imaginário dominante do rap nacional.
Assim como Baco, Criolo já tinha sido abraçado pelo hype da classe média universitária.
Entretanto, Criolo penetrou na bolha da elite cultural e extrapolou o nicho do rap fazendo uma música que, apesar de ancorada no rap, dialogava com outros gêneros, como o samba, o afrobeat e até o bolero. Em contraste, Baco parece estar conseguindo alcançar outros públicos fazendo rap mesmo. Neste sentido, sua ascensão hypada parece estar relacionada com a espantosa expansão pela qual vem passando a cena do rap nacional. É verdade que, já há algum tempo, nomes como Emicida e Projota transitam com desenvoltura pelo mainstream. Mas as dezenas de milhões de visualizações no Youtube de novos nomes, como Hungria e 1 kilo, registram este crescimento notável.
Eventualmente, o rap tem sido capaz, inclusive, de fissurar a hegemonia mercadológica exercida pela trinca comercial divas pop/sertanejo/funk. Logo, a ascensão de Baco não é um fato isolado.
A adesão do público à sua música parece ter a ver com sua capacidade de dialogar com nosso tempo. Seu discurso e sua performance estão em simbiose com os anseios de uma certa juventude inquieta, que vive a encruzilhada histórica pós PT e pós 2013. Tensionada pela contradição entre as possibilidades eróticas originadas pelas lutas de libertação do corpo e o avanço das pautas identitárias, de um lado, e a reação a essas pautas, as incertezas perante um futuro economicamente crítico e a ameaça real de uma grande noite autoritária, do outro. Neste mundo, Baco tem o carisma do personagem “garoto confuso” e indomesticado, parido pela raiva, de frente para o precipício do último cigarro, no bar de numa cidade subdesenvolvida e explosivamente e musical na América Latina do século XXI. Onde se confronta o deserto do real com gritos de “somos homens e mulheres livres”!
Com 23 anos, Baco é um artista que agenciou as redes sociais a seu favor, e agora se arrisca e se expõe, falando abertamente da sua depressão e até de suicídio. Grita visceralmente na música “En tu mira”: “Isso é um pedido de socorro, você está aplaudindo”! Atormentado, diz que já se “matou” em estúdio e que poderia fazer isso “ao vivo”. Auto denominado um “jovem Basquiat” ou o “Kanye West da Bahia”, Baco tem um texto tenso e inquieto. Fala de amor e sexo de maneira anárquica. E isso cola. Parece que a galera descontruída que ouve seu som e testemunha os aplicativos de “pegação” intensificarem a fluidez dos relacionamentos amorosos contemporâneos, também quer ouvir lovesongs, como o pessoal do sertanejo ou do funk, só que com outra estética.
Baco defende esta lírica ansiosa e melódica com flows variados entre si, falando recorrentemente de Deus, da morte, dos karmas, de Jesus, sempre remetendo ao sagrado. Sua poesia está banhada pelo sincretismo religioso da Bahia, sugerindo uma versão afro-baiana da religiosidade meio gótica/meio evangélica, presente no clássico álbum dos Racionais, “Sobrevivendo no Inferno”. Suas palavras atravessam este labirinto entre o Xangô e Exu para encontrar uma plateia, ávida por sua música, que bate cabeça o show inteiro. Se nos shows do Baiana System tem a roda que emula o ritual punk do pogo, no show de Baco tem eletricidade rock na plateia. Toda esta intensidade proporciona uma troca de energia forte entre público e artista, de onde emerge uma atmosfera de sobrecarga e alívio, orquestrada pela voltagem caótica e juvenil do rap de Baco Exu do Blues.
Todo este volume eletrizante é abastecido pela música de dois álbuns. “Esú” de 2017 e o já mencionado “Bluesman”. Por conta do sucesso de “Te amo, desgraça”, do primeiro, que, no Youtube, tem mais visualizações do que todas as outras músicas do mesmo disco juntas, Baco tentou repetir a fórmula no segundo. Metade de “Bluesman” tem o clima lascivo, sentimental/atribulado de “Te amo, desgraça”. Numa delas, Baco acertou lindamente. Em “Flamingos”, as cantoras Lio e Lay, da banda de afrofolk Tuyo, brilham com seus vocais lamuriosos, como se estivesse numa discussão apaixonada num momento de pós-sexo. Me lembrei da antológica interpretação de Alice Smith para “I’m a fool for you”, de Ce Lo Green.
Mas o melhor do disco recém-lançado é mesmo sua faixa título e o clip/filme que a acompanha. Neles, Baco busca inspiração no blues, o gênero-mãe de toda a família de estilos musicais negros dos EUA. Bebe em sua fonte revitalizadora. Baco quer ouvir o coração da música rebelde e melancólica cuja alma resume esteticamente parte importante da experiência dos africanos na América do Norte. Toda a música pop americana se inspirou no blues. Tudo que veio depois, o R&B, o Rock, o Funk, o Soul, começou no Blues. Portanto, o rap sempre foi meio blues também. O blues já tinha sua falação ritmada sobre uma base “repetitiva” e o constante autoelogio do compositor. E o Blues também já foi acusado de ser “a arte decadente de uma sociedade violenta”.
Em “Bluesman”, Baco tentou fazer Blues sem os elementos estéticos clássicos do blues, como a guitarra e a gaita. Prestou-se ao desafio de converter em rap de Salvador/Brasil o blues elétrico de Memphis. No álbum, há os samples do clássico “Manish Boy”, de Muddy Waters, e a citação verbal direta a B.B. King. Há também um engenhoso “conceito”, segundo o qual “Tudo que quando era preto era do demônio, e depois virou branco e foi aceito, eu vou chamar de Blues”. No Brasil, o samba é blues, o blues é samba, e o rap é ambos. O rap de Baco é, certamente, Blues mas talvez com mais alma e intensidade em “Esú” do que no próprio “Bluesman”.