Tiros, cavalos, bombas e torturas. Gritos, pancadas, corpos sumindo, a palavra calada na boca de quem tem muito a dizer. As ruas tomadas do cheiro da pólvora e do sangue, da lágrima que escorre de quem não sabe onde estão seus filhos. Os amores? Como se ama em tempos de guerra? Como se entregar enquanto não se sabe se o próximo dia irá resistir aos passos covardes, aos coturnos e ataques? Não, não estamos na cabeça psicopata de algum saudosista dos anos de chumbo e da ditadura brasileira, agora investido em cargos de poder no governo central. Mas os tempos são quase os mesmos. Os ventos de agora nos levam em tormentas. Não estamos nos sonhos de quem veste a tortura em suas campanhas eleitorais; nas loucuras de um Carlos ou Jair. Não estamos. Toda essa expressão de dor e resistência está na obra Que Fim Levaram Todas as Flores (2019 / Kotter Editorial e Editora Patuá) de Otto Leopoldo Winck, sem dúvida uma mas melhores publicações do último ano e forte candidata aos próximos prêmios literários.
Que Fim Levaram Todas as Flores aparece num momento extremamente oportuno. Não apenas pela semelhança entre os dias atuais e o momento retratado por Winck, mas por engrossar a lista de ótimos livros com viés histórico publicados recentemente pelas chamadas pequenas e médias editoras.
Os últimos dois ou três anos foram positivos para os chamados romances históricos. Atrativos, envolventes e com enredos que trazem memórias afetivas, seu círculo de leitores geralmente é mais amplo que os romances convencionais. Não é algo incomum os escritores inserirem suas histórias em recortes temporais, Jorge Amado já fazia isso. Tantos outros também. Contudo, o romance histórico exige um pouco mais do que simplesmente lançar mão de personagens, falas e encontros em qualquer período. Com maestria foi o que mostrou o escritor Otto Leopoldo Winck.
Escrever um romance histórico não é tarefa das mais fáceis. Além de expor o enredo às lupas dos mais chatos que em tudo procuram erros e imprecisões, existe a necessidade de compor finas camadas narrativas que possibilitem a inserção dos elementos ficcionais em meio aos acontecimentos reais. É um exercício em que o autor se despe das nuances do seu eu narrativo para criar um mundo novo em uma realidade que de fato existiu. Não li obra alguma nos últimos anos com o mesmo rigor que o apresentado por Winck.
A Curitiba dos anos de chumbo
A obra é centrada nas lembranças de três amigos, bem como nas situações que geraram inúmeros encontros e desencontros tendo como pano de fundo uma Curitiba que a maioria dos brasileiros desconhece e a forma como a cidade passou pela ditadura militar e pela redemocratização do país. Ruy, Adrian e Elisa, os três amigos que deixam uma pequena cidade paranaense rumo à Curitiba dos anos 60 são os três elementos que nos conduzem em meios às suas lembranças e trajetórias. O quanto a dor poderia afetar alguém? É o que os amigos respondem reconstituindo a cidade a partir das suas memórias, dos costumes e até das personalidades e pessoas comuns daquele tempo. Não existe reconstituição histórica de uma cidade e uma época mais precisa que a efetuada por Otto Leopoldo Winck, curiosamente não curitibano de nascimento. O escritor é carioca.
O livro perpassa, igualmente, pelas modificações que o tempo e as dores causaram em cada um dos personagens. Todos são vítimas, protagonistas de suas próprias histórias e das agruras de um tempo. Todas as mudanças temporais – o livro atravessa décadas a partir das memórias dos personagens – dialogam com as grandes obras literárias, as músicas e referências da cultura pop dos últimos anos, apresentando ao leitor um cenário completo de como Curitiba e o Brasil mudaram e como tudo influenciou os personagens.
Publicado pela paranaense Kotter Editorial em parceria com a paulista Patuá, o livro é graficamente belo, conceitualmente muito bem estruturado e com o rigor que tem se tornado marca das publicações do editor Sálvio Nienkötter. Sua casa editorial, a Kotter, tem se tornado abrigo importante para obras literárias de viés ideológico ou de contraposição às posturas do governo federal em relação à arte, cultura e economia no Brasil.
O texto de apresentação cabe à escritora Márcia Denser, figura de destaque na resistência literária brasileira nos anos de chumbo e das nossas mais criativas autoras contemporâneas.
O cronista de Curitiba
Nascido no Rio de Janeiro e radicado em Curitiba desde os anos 80, Otto Leopoldo Winck é o mais qualificado e preciso cronista da capital paranaense. Doutor em Literatura e professor universitário, ganhador de diversos prêmios nacionais de literatura, tem se destacado pela vasta produção poética e pelos seus romances. Curitiba é sempre uma peça presente em seus escritos. Seu romance de estreia, Jacob (2007/Garamond), já nos havia apresentado a capital paranaense em uma faceta mais recente e agora, Que Fim Levaram Todas as Flores, nos conduz à realidade finamente recriada da cidade dos anos 60 em diante.
O autor
Otto Leopoldo Winck nasceu no Rio de Janeiro, em 1967 e radicou-se em Curitiba, em 1982. Doutor e mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná, em 2006 foi vencedor do prêmio da Academia de Letras da Bahia com o romance Jaboc, publicado no ano seguinte pela editora Garamond. Em 2012 foi o vencedor do Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura, na categoria poesia, e em 2017 lançou pela Editora Appris o ensaio Minha pátria é minha língua: identidade e sistema literário na Galiza – resultado de sua pesquisa de doutorado. Em 2018 a Kotter Editorial publicou Cosmogonias, a sua produção poética dos últimos cinco anos. Atualmente, leciona na Pontifícia Universidade Católica do Paraná e no programa de pós-graduação stricto sensu da Uniandrade, em Curitiba.
Que Fim Levaram Todas as Flores pode ser adquirido pelo site da Kotter Editorial.
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