Depois de mais de 35 anos de existência, a cena de rap do Brasil tornou-se multifacetada e complexa. Nela, o rap de mensagem convive com o gangsta rap, com as trocas estéticas entre o r&b, 0 trap e o funk carioca, as lovesongs aparecem ao lado do atabagrime e do drill, e ainda temos ecos do boombap e outras muitas coisas. Nesse contexto, o rap nacional precisa ser analisado a partir de novos parâmetros, como parte da nova música urbana feita no Brasil, em conexão com o pop e com novos circuitos digitais de distribuição e consumo. Isso significa levar em conta que o rap brasileiro está tanto no trabalho de base do movimento Hip Hop, ligado à militância anti-racista e à pedagogia popular, quanto nos milhões de views e plays de artistas que lotam shows, criam suas próprias gravadoras, dialogam com marcas e vendem para multidões, através das redes sociais, o estilo de vida criado nas ruas pelas juventudes periféricas das grandes cidades.
Atuando nessa cena esteticamente heterogênea, economicamente ascendente e politicamente assediada pelo neoliberalismo, existe um artista como Don L, rapper do Ceará, forjado no litoral quente e urbano do Brasil e reconhecido nacionalmente como um dos melhores mcs da cena. Gabriel Don L fez mais um show no Circo Voador no último mês, com a bronca de quem é referência para Matuê e parceiro de feat de Djonga. Auto intitulado o “rapper favorito do seu rapper favorito”, Don L subiu no principal palco do Rio de Janeiro com muita música no pente, armado das tracks do seu premiado último disco “Roteiro para Ainouz 2”, (APCA de artista do ano em 2021), do primeiro álbum de sua trilogia reversa, o RPA 3, de 2017, e de sua mixtape “Caro Vapor”, de 2013.
Com habilidades de produtor e uma canetada praticamente imbatível, Don L mostrou na Lapa porque caminha para ser um dos mais consistentes artistas do novo rap nacional. Atual e ao mesmo tempo ancestral, Don L é atento ao que há de mais contemporâneo no gênero musical em que milita e também ao melhor do legado do Hip Hop. Longe de estar estourado como os artistas de trap/funk que hegemonizam as playlists, o rapper, que é de Fortaleza mas mora desde 2013 em SP, fez um show sólido no Circo, onde mostrou que seu rap tem swagg próprio, fora da órbita dos canônicos Racionais, MV Bill e Marcelo D2, distantes das receitas pop de Xamã ou Ret, mas também alheio aos velhos clichês regionais que exotizam o nordeste.
Permanentemente interessado no tema do êxodo, da migração, do não lugar como um estado permanente, Don L paraceu em casa no Rio, uma das primeiras cidades a abraçar seu trabalho musical. Por isso, o público do Circo estava em polvorosa com a presença do rapper, cantando com ênfase muitas das letras apresentadas ali através do trabalho coletivo de uma banda poderosa, formada por Fernando Catatau na guitarra, Thiago França nos metais, Tami Silveira no teclado, Beatriz Lima no baixo. Completando a linha de 5, o experiente DJ Roger nas pickups, no centro do palco. Na frente deles, outra linha de 3, com o próprio Don L no meio e os excelentes mcs de apoio, AltNiss e Terra Preta, um de cada lado. AltNiss e Terra Preta são destaques do show, pois, como também são artistas, têm a presença necessária para produzir os intervalos melódicos que aliviam a falação frenética que caracteriza o rap. Grande show de rap!