Considerada por muitos como uma obra “infilmável”, inclusive por seu próprio autor, “Sandman” virou série da Netflix e os fãs do quadrinho finalmente viram o Sonhar chegar ao live-action.
Para que a adaptação fosse realizada com êxito, dois fatores foram fundamentais: a escolha pelo formato de série e a participação de Neil Gaiman atuando diretamente junto à produção – o que também funcionou muito bem na ótima série “Good Omens”, adaptação de outra obra sua.
O estilo narrativo usado por Gaiman em “Sandman” e os longos arcos desenvolvidos nas histórias dificultavam a adaptação da obra no formato de longa-metragem, criando um enorme risco para o estúdio que viesse a produzi-lo. Para encaixar em um filme, ou grupo de filmes, provavelmente seriam necessários cortes e mudanças drásticas no roteiro, que levariam à grande perda da qualidade original da obra.
No formato em que foi desenvolvida, a série englobou os dois primeiros arcos do quadrinho – Prelúdios e Noturnos e A Casa de Bonecas – e os roteiristas encontraram um jeito de contar a história de uma forma mais linear do que na obra original, tornando-a mais acessível ao público.
Mas afinal, sobre o que é “Sandman”?
Em meados dos anos 80, a DC Comics convidou o autor britânico Neil Gaiman para trabalhar na editora, permitindo que escolhesse um de seus personagens clássicos para reformular. Ele escolheu Sandman (Wesley Dodds), um herói da Era de Ouro da DC, modificando totalmente sua origem, personalidade e história.
Nas mãos de Gaiman, Sandman passa a ser Lorde Morpheus, governante do Sonhar e um dos 7 Perpétuos – os Perpétuos são entidades responsáveis pelo ordenamento da realidade tal como a conhecemos; são manifestações antropomórficas de aspectos dos seres vivos, expressas como Destino, Morte, Sonho, Destruição, Desejo, Desespero e Delírio. As histórias de Sandman são focadas no envolvimento do personagem com a humanidade e com seres dimensionais, e nas relações que ele constrói.
Na adaptação para a série, algumas mudanças na história original se fizeram necessárias – algumas questões específicas da trama sofreram modificações a fim de tornar a narrativa mais fluida e interessante. Além disso, como o personagem existe no universo tradicional DCnauta, vários personagens e locais clássicos da DC fazem participações no quadrinho de Gaiman. Por questões de direitos autorais, essas referências tiveram que ser retiradas da série.
Apesar disso, um personagem do universo tradicional da DC que tem grande relevância na trama de “Sandman” não foi apagado, mas transformado. John Constantine muda de gênero – e isso não incomoda de forma alguma. A escolha por usar Johanna Constantine, uma parente do John dos quadrinhos, faz sentido para a história e funciona para seu desenvolvimento, além de criar uma dinâmica interessante entre ela e o protagonista. A única ressalva que precisa ser feita é a ausência dos traços marcantes de Constantine em sua versão feminina: sua loucura psicodélica e suas vestimentas desleixadas são suprimidas.
Tom Sturridge como o governante do Sonhar funciona perfeitamente. Sua forte presença em cena, seu tom de voz baixo, sua não-expressividade, marcam sua atuação, trazendo todos os elementos necessários ao personagem. Ele permite que os atores com os quais contracena brilhem no tom certo.
Entre os principais acertos do elenco estão Vivienne Acheampong como a bibliotecária do Sonhar, Lucienne, que brilha nas cenas de debate com o Lorde Morpheus; Boyd Holdbrok vivendo o vilão Coríntio, que impõe presença sem precisar apelar para maneirismos vilanescos; David Thewlis no papel de John Dee, outro personagem reformulado do universo DC, que é assustador em um nível que não conseguimos imaginar o que ele fará a seguir; Kirby Howell-Baptiste fazendo uma transposição simplesmente perfeita da Morte, num dos melhores momentos da série, além de John Cameron Mitchell, que apresenta um Hal Carter totalmente diferente dos quadrinhos, com muito mais personalidade e nuances.
Para uma obra dita como “inadaptável”, a série “Sandman” consegue fazer o espectador lamentar o fim de cada episódio, deixando no coração o desejo de querer conhecer mais desse universo e a sensação de não querer que a história acabe. Ao fim dos 10 episódios, fica a vontade de assistir a todos novamente, e logo! Ficamos tão embarcados na magia do Senhor dos Sonhos, que só nos resta adormecer e retornar ao Sonhar.
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