Fotos: Maíra Barrillo
A dramaturgia de rINOCERONTES, com direção de Luiza Rangel e encenada pelo Coletivo Errante, causa impacto. O trabalho sobre o texto de Eugène Ionesco, O Rinoceronte, escrito na década de 60 e no qual a lógica é colocada na berlinda (seus princípios são claramente ironizados quando se chega à conclusão segundo a qual todo o gato tem quatro patas, meu cachorro tem quatro patas, logo, meu cachorro é um gato), ganha materialidade em movimentos coletivos dos oito atores no palco e a forma como se apropriam do espaço cênico.
É mais do que evidente que, em rINOCERONTES, a perturbação, para acontecer de modo potente, necessariamente deve associar texto e visualidade. A dramaturgia é perturbadora, a inversão dos acontecimentos acirra a perturbação que se apresenta, os diálogos o reforçam. Enfim: tudo é movido de seu lugar de costume.
A peça se inicia com os atores movimentando-se de um lado a outro da cena, respeitando-se pausas e ritmos, de modo que questionamos a nós mesmos e nossos comportamentos em nossas coletividades e grupos. Numa dessas movimentações iniciais, eles passam de cabeça abaixada teclando e se distraindo com smartphones. O texto de Ionesco não era contemporâneo do avanço tecnológico que se vê hoje em dia, mas já interpelava a ordem do mundo ou o que se poderia considerar como suas características supostamente dadas.
Repetições de gestos e de falas, algumas destas presentes no texto original do autor absurdista, podem evocar nossa própria compulsão à repetição diária, em que fazemos coisas pelo simples hábito de fazê-las (olhar a rede social a todo momento, sem que se esteja procurando nada em específico, pode ser considerado uma ilustração dessa compulsão à repetição atual?). O corriqueiro, na dramaturgia e no texto, é problematizado.
Por outro lado, há também cenas de violência que parecem ser normais, como aquela em que todos os homens de um escritório esfregam-se em uma funcionária que não reage ao assédio. Rinocerontes à solta são mais estranhos do que esses hábitos corriqueiros da vida cotidiana ou da violência muda que uma mulher pode sofrer em seu ambiente de trabalho? Sim, rinocerontes à solta são estranhos, muito estranhos, mas as violências diárias entre pares não ficam aquém, também o são, também se deve ter sobre elas longos debates com direito a silogismos e tudo mais, mas naturalizamos o absurdo.
Na peça, a primeira aparição de um rinoceronte pela cidade, assustando a todos e gerando estardalhaço, gera diálogos absurdos e reverberações desprovidas do que entendemos como sendo a lógica, apesar de o Lógico estar sempre por perto, tentando conferir soluções a debates que não se desatam. Mas aparece um segundo rinoceronte e, no desenrolar da trama, cada vez mais o incomum passa a comum, o infrequente passa a constituir a normalidade, e uma transformação toma conta da espécie da humana. Isso tudo é tão distante da realidade em que vivemos? Talvez a transformação literal pareça absurda, mas diante do deslocamento existencial patente em alguns personagens, que nunca se acostumaram com seus corpos, diante disso essa talvez seja a única saída lógica.
O espetáculo convida à indagação e aproveita recursos sonoros e materiais (como um enorme saco plástico preto que voa sobre todos da plateia, como um pássaro gigante que captura o público ou o transforma, em sua veloz passagem acima de suas cabeças) para chacoalhar, junto com o texto, os espectadores e seus confortáveis lugares de lógica e bom senso.
“rINOCERONTEs”
Temporada: de 3 de maio a 3 de junho – de quarta a domingo, às 19h.
Local: Teatro Dulcina – Rua Alcindo Guanabara 17, Centro. Tel.: 2240 4879.
Ingressos: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia).
Lotação: 429 lugares. Duração: 80 minutos. Classificação indicativa: 14 anos
www.coletivoerrante.com | @coletivoerrante
FICHA TÉCNICA
Autor: Eugène Ionesco
Direção: Luiza Rangel
Orientação: Eleonora Fabião
Assistência de direção: Mika Makino
Elenco: André Locatelli, Davi Palmeira, Giulia Grandis, Hugo Camizão, João Vitor Novaes, Livs Ataíde, Marina Nagib, Tamires Nascimento (stand-in) e Thiago Mello.
Dramaturgista: Renan Guedes
Arte sonora: José Ricardo Neto e João Werneck
Direção de Arte: Marcela Cantaluppi
Cenografia: Fabiana Mimura
Figurino: Thainá Moura
Orientação de cenário e figurino: Renato Machado
Iluminação: Lívs Ataíde e Daniel Cintra
Preparação vocal: Verônica Machado
Projeto gráfico: Davi Palmeira
Produção: Coletivo Errante e Tem Dendê! Produções
Administração de temporada: Mariah Valeiras
Realização: Coletivo Errante e UFRJ
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