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A força de Carol Chalita e Joumana Haddad no monólogo Eu matei Sherazade

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O público ainda está se acomodando em seus lugares no teatro, quando a voz, ainda distante, em tom baixo, de Carol Chalita, posicionada em um dos cantos do palco, envolta por um dos véus que pende do teto, ressoa sem pressa, repercutindo o clássico As mil e uma noites, em que a personagem Sherazade, através de uma contínua e incansável contação de histórias, vai adiando sua sentença de morte ao prender a atenção e a curiosidade do sultão que, por vingança, até ali, matava todas as mulheres sempre na noite de núpcias. O público se aquieta, vai se dando conta de que uma narrativa já teve início e, quando todos silenciam para melhor ouvi-la e as luzes se apagam definitivamente para o que seria um início oficial do espetáculo, a atriz se levanta e se apresenta como uma mulher árabe que matou Sherazade.

Foto: Juliana Chalita

Esse é o texto de força e coragem de Joumana Haddad, escritora e jornalista libanesa, e que ganha uma fortíssima versão dramatúrgica no impactante espetáculo Eu matei Sherazade – Confissões de uma mulher árabe enfurecida, com direção de Miwa Yanagizawa. A idealização e a dramaturgia da peça são de Carol Chalita, que é acompanhada no palco, do início ao fim, por Beto Lemos, que, por sua vez, assina a direção musical e a trilha sonora original do espetáculo.

A ativista e jornalista Joumana, entre outros trabalhos, edita a revista erótica Jasad (O Corpo), em Beirute, com depoimentos, poesias e fotografias que giram em torno de temáticas de sexo e sexualidade. Segundo informações colhidas em reportagens e entrevistas, a revista circula de forma clandestina pelo mundo árabe. A apresentação da autora, através do texto que Carol Chalita vive no palco, irá apontar os preconceitos ocidentais com o mundo árabe, e a paixão pela escrita e o refúgio que a literatura traz são parte de sua obra, compondo o monólogo.  No entanto, talvez não exista mesmo essa rubrica “mulher árabe”, como o texto nos adverte, já que ela, Joumana, “mal representa a si mesma”. Afinal, se há, efetivamente, hábitos culturais que nos horrorizam quando temos conhecimento de sua existência, não estamos tão distantes assim e nos damos conta disso quando a atriz faz importantes inserções que dizem respeito ao nosso contexto, ao mencionar o “pensamento brasileiro”, lado a lado com o “pensamento árabe”. Uma das inserções é a menção ao Projeto de Lei 1904/24, que tramita na Câmara dos Deputados e, como Chalita nos lembra em alto e bom som, pretende equiparar o aborto ao crime de homicídio em gestações acima de 22 semanas, imputando à mulher que interromper uma gravidez fruto de um estupro uma pena maior do que aquela do homem que o cometeu. Ora, o quão discrepante é nossa cultura latino-americana, sulamericana, brasileira, sudestina, daquilo que apontamos da cultura árabe, em termos de violência de gênero?

Foto: Juliana Chalita

O espetáculo é muito interessante ao propor uma desconstrução do valor da personagem de Sherazade, dado como digno de admiração desde sempre devido à sua engenhosidade em construir, com paciência e sagacidade, o que seria uma recusa à subalternidade da mulher perante a cultura patriarcal. No entanto, o que Joumana e Carol Chalita fazem é sublinhar que Sherazade não rompera com o sexismo, uma vez que a figura de assassino e feminicida (para usar os termos atuais ocidentais) referente ao sultão acaba se ocultando por trás de uma curiosidade literária e imaginava face às histórias de Sherazade. O olhar perspicaz de Joumana Haddad nas discussões de gênero desperta o interesse desde as primeiras palavras de Chalita no palco. A atriz empresta seu corpo, suas emoções e sua voz a um texto vibrante, vigoroso, que contribui para chacoalhar convicções e ensejar certo necessário constrangimento quando constatamos nosso atraso e nossa violência, precisamente ocidentais, em relação às mulheres.

Foto: Juliana Chalita

O espetáculo esteve em cartaz no Rio, no Teatro Poeira e no Teatro Ziembinski, no segundo semestre de 2024, e possui uma trajetória que remonta à pandemia, quando o projeto teve início através da Lei Aldir Blanc. Pela beleza do monólogo, pela qualidade da montagem e seu arrojo, pela entrega honesta e repleta de coragem de Carol Chalita e equipe, o espetáculo acena para vida longa na nossa dramaturgia.

Equipe Criativa:

Livre adaptação de um livro de: Joumana Haddad

Dramaturgia: Carol Chalita e Miwa Yanagizawa

Idealização e Atuação: Carol Chalita

Direção: Miwa Yanagizawa 

Direção Musical e Trilha Sonora Original: Beto Lemos

Cenografia: Constanza de Córdova

Figurino: Tereza Fournier

Fotos: Vinícius Mouchizuki

Programação Visual: André Senna

Direção de Produção: Sérgio Saboya e Silvio Batistela

Realização: M S Documenta Produções Artísticas e Jornalísticas

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