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Solo: um espetáculo sobre a solidão e a morte

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Entra-se de frente para uma comprida mesa retangular, onde, de costas para as pessoas que vão entrando e de frente para onde irá se posicionar a plateia, em duas fileiras de cadeiras do lado oposto a essa mesa, há um homem sentado e concentrado em um monte de terra. Mais tarde saberemos que se trata de um coveiro, que assiste aos enterros, que aprecia a beleza das moças de luto e tristes, cuja pressa as faz, entre outras coisas, esquecer de usar maquiagem, homem esse que descobre objetos na terra e que os respeita, assim como à ela, a terra que tem à sua frente e que alçará a uma categoria de respeitabilidade cega.
A beleza plástica do espetáculo Solo, com direção de Vinícius Arneiro, já começa com essa visão, em cenografia assinada por Fernando Mello da Costa, em que, do escuro, passaremos a acompanhar quatro histórias que se interpenetram cada vez mais e vão acontecendo, como clarões e bolhas de vida, aqui e ali no espaço cênico (debaixo da mesa, sobre ela, perto de nós, a um canto ou bem no centro da mesa, onde a principal história vai se revelando em sua escassa ingenuidade).
O belo texto de Solo, de Fabrício Branco, foi vencedor da 8ª edição do concurso de dramaturgia Seleção Brasil em Cena, e deslinda vidas marcadas por sofrimento, solidão e embates. Fica-se absorvido pelas histórias que esses personagens têm a contar, pela força de sua narrativa e pela fluidez com que o elenco a trabalha e a toma para si.
Entre os personagens, a princípio, um coveiro – esse homem central que, sem que percebamos claramente, vai, aos poucos, deixando nítido seu costurar das demais histórias e a ligação que elas têm entre si e com ele. Não é à toa que seu posicionamento é, preponderantemente, central no espaço cênico, sendo interpretado por Kadu Garcia: tudo gira em torno dele, talvez porque tudo gire em torno da terra, do solo que nos sustenta e nos abriga ao fim e ao cabo.
O personagem do coveiro tem, assim, uma relação especial com a terra, de quase venerabilidade e de proteção. É preciso alimentá-la, porque ela também alimenta, e ali se estabelece quase que uma relação de dádiva, em que a troca entre o que a terra oferece e o que o homem terá a oferecer deve ser preservada.
Os demais personagens são a gorda, interpretada por Aliny Ulbricht, em seu constante diálogo com o corpo e a sensualidade, com a autonomia que persegue em relação aos padrões não apenas de beleza, mas também (e principalmente) de vida, em belo texto que questiona tais padrões e as necessidades de agradar ao outro, necessidades essas que podem se repetir em qualquer tipo de relação, seja ou não heteronormativa; o mendigo, interpretado por Bárbara Abi-Rihan, cuja vociferação e gargalhadas alucinadas constantes desafiam a invisibilidade que denuncia e em que cai, como moradora de rua e pedinte; e o pastor, interpretado por Jansen Castellar, repetindo mais para si mesmo do que para qualquer outro as cantilenas evangélicas de bons comportamentos, perseguido e atormentado por seus próprios impulsos de moral duvidosa.

Os quatro personagens, ensimesmados com suas inquietações e suas vidas, com suas insatisfações e seus julgamentos morais (seja para repeli-los, seja para fortificá-los e por eles fazer algo que confira espessura prática e não apenas discursiva) parecem aglutinar bem o nome Solo, que, sim, se refere ao solo literal, àquele que embrulhará a todos após a morte, à terra sobre a qual pisamos e com a qual o coveiro tem uma relação de encantamento, mas também à solidão de suas vidas, de suas crises existenciais e seus perenes sofrimentos e combates internos.
Estão sempre conversando consigo mesmos, como se numa busca confessional afirmativa de suas existências e de suas escolhas. Os atores estão à altura da força e da singularidade de cada personagem, da assustadora presença que por vezes seus movimentos, seus olhares inquisidores para a plateia e suas risadas se desenrolam no palco. São, em verdade, todos eles invisíveis de uma certa maneira, estão todos brigando contra si mesmos ou contra imposições sociais alheias. Esse coveiro mesmo, ao redor do qual tudo parece girar, que não pode ceder aos impulsos sexuais que tem ao observar as mulheres chorosas nos enterros e a quem não se dá a devida atenção: é graças à sua invisibilidade, aqui necessária, presença subvalorizada, que os demais destinos acabam por ser traçados.
Não será demais dizer que o espetáculo traz imagens impactantes e é visceral, em termos de texto e de dramaturgia, de imagens e de objetos usados no palco, de iluminação e musicalidade, porque é sobre a morte que se está falando o tempo todo, e dizer um pouco mais neste texto sobre Solo é estragar as surpresas que ele contém e as revelações que culminam na belíssima cena final.

FICHA TÉCNICA

Realização: Centro Cultural Banco do Brasil
Dramaturgia: Fabrício Branco
Direção: Vinícius Arneiro
Assistência de Direção: Andreas Gattoobrigatório para os nossos tempos
Elenco: Kadu Garcia, Aliny Ulbricht, Bárbara Abi-Rihan e Jansen Castellar
Cenografia: Fernando Mello da Costa
Figurino: Ticiana Passos
Direção Musical: Marcelo H
Iluminação: Bernardo Lorga
Programação Visual: Tânia Grillo
Produção Executiva: João Eizô Y. Saboya
Assistência de Produção: Alessandro Zoe
Direção de Produção: Sergio Saboya

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