Entrevista com Mário Cardinale: extraindo arte em meio ao caos da realidade

Entre outubro de 2018 e dezembro de 2022, num período que passa por uma guinada política à direita, por uma epidemia de escala global, por morte, descaso, desesperança e uma época sombria para o Brasil, Mário L. Cardinale processou tudo isso em forma de poesia. Literalmente. Natural de Poá, na região metropolitana da capital paulista, ele deu vida a “Tempo diabo” (Editora Pedregulho, 80 pág), coletânea de 40 textos que é uma segunda parte de uma tetralogia poética do autor.

Tratando aqui direta e indiretamente de temas como as cicatrizes e tensões de um momento crítico do país.  Tocando em coisas específicas como a prisão arbitrária do presidente Lula e em outras, mais amplas, como reflexões sobre violência policial, militância política. Passando por uma abordagem pessoal e mais íntima de um autor em crise de meia idade. Mosaico que é colado pela ideia do tempo. Que é feito por um anseio de registrar que, enquanto ajuda o artista a lidar com tudo, cria um ponto temporal a ser analisado no futuro.

Mário se formou em Farmácia pela Universidade de Mogi das Cruzes em 2003. Tem um interesse amplo pela arte. Principalmente por música. Toca violão, guitarra e teclado e tem um leque de referências que vai dos Stones a Caetano e Gil mas que perpassa também os clássicos. Clássicos mesmo, como Antonio Vivaldi. A escrita é relativamente recente. Veio em 2016, quando as coisas começaram a se romper politica e institucionalmente durante o golpe sofrido pela presidente Dilma Rousseff. Transformou a vontade em um curso de escrita criativa e depois no primeiro livro: “O mundo e o poeta”, de 2020. 

“Tempo diabo”, que foi lançado agora, é um livro concebido entre a cidade e o campo. E flui a partir da evolução dos temas e dos sentimentos do escritor.

Leia a entrevista completa do escritor Mário L. Cardinale:

Como você chegou nos temas deste novo livro?

O tema central do livro é o tempo e a relação dele com os meus espantos cotidianos.

Escrevo sobre o cotidiano e tudo o que me desperta interesse. Nada é tão ruim e bom quanto o tempo. Eu queria registrar o que estava acontecendo ao meu redor nesse período em que o tempo parecia mais lento e ao mesmo tempo finito a qualquer momento.

O que motivou a escrita do livro? Como foi o processo de escrita?

“Tempo Diabo” já existia antes de sua concepção. Poemas que ficaram de fora do meu livro de estreia já compunham essa segunda obra.

Durante a seleção dos textos percebemos que alguns deles se aglutinaram logo de cara, entendi que o livro devia ser marco poético no desenrolar do tempo histórico do Brasil e do mundo, o turbilhão político e a violência que se instalaram no país e a pandemia global que influenciaram diretamente a rotina. Durante esse período, tive um filho, fiz militância política e vivi um exílio sanitário em São Bento do Sapucaí, no interior de São Paulo, que me permitiu ser mais produtivo em relação à escrita e muitos textos brotaram disso. Minha companheira Monique, ajudou com a revisão e organização dos textos antes do envio para a submissão da editora Pedregulho, que aceitou o livro.

Para você, fazer poesia também é um ato político, de militância?

Viver é político. Não importa se o poema tem viés romântico, existencialista ou partidário, escrever é um ato político e ponto. Militância é paixão. A paixão te encoraja e estimula. Escrever é razão. É consciência. Todo texto é político por essência, mas só é militante se o escritor quiser que seja. Poesia, antes de tudo, deve estimular o leitor a pensar.

 Qual é o papel da literatura, em sua opinião, como ação política?

A literatura é ferramenta essencial de formação sociocultural para qualquer comunidade. É através dela que refletimos sobre a amplitude do existir humano pontuado no tempo e no espaço. Ela te põe em contato com personagens e/ou sujeitos poéticos de forma tão íntima que é capaz de nos transportar para aquele universo. A ação política da literatura é ser libertadora. Ela dá ao indivíduo  a possibilidade de perceber estímulos do mundo ao seu redor a partir de outras perspectivas. Isso faz da Literatura uma ferramenta muito poderosa, tão poderosa que, ainda hoje, livros milenares determinam a forma como alguns grupos de pessoas vivem.

Quais são as suas principais influências literárias? Algum livro teve influência direta em “Tempo diabo”?

Minhas principais influências poéticas são Ferreira Gullar, Manuel Bandeira e João Cabral que sempre andam comigo. Mas mergulhei em outros autores como Manoel de Barros e Augusto dos Anjos que têm relações com o campo e a morte, respectivamente, e dialogam muito com o período. Dos contemporâneos gosto muito do Chacal, da Ana Cristina Cesar e também de compositores brasileiros como Arnaldo Antunes e Caetano Veloso. Li as principais distopias, Eduardo Galeano, Darcy Ribeiro e leituras marxistas que também me influenciaram bastante no meu processo criativo. Li muitos autores que fazem da crítica social o alicerce de suas obras. José Saramago, Eça de Queirós, Aluísio Azevedo, Lima Barreto e Vitor Hugo, entre tantos.

Dois livros influenciaram diretamente e batizaram poemas em Tempo Diabo: Clube da Luta de Chuck Palahniuk e Fahrenheit 451 de Ray Bradbury. O escritor é antes de tudo um leitor, essa frase é clichê mas é a pura verdade. Reajo aos estímulos da leitura criando, escrevendo. Costumo ficar mais produtivo quando estou em uma boa leitura. Eu estava lendo Cem anos de Solidão do Gabo, por exemplo, quando escrevi um poema sobre um rio mirabolante.

Você cita diversos músicos da MPB como influência. Como eles auxiliam em sua criação poética?

Meu processo de escrita é rítmico e melódico. Quando começo a compor há em minha cabeça sempre uma espécie de melodia fazendo sombra ao verso e mais ao fundo um ritmo. Tenho uma ligação muito forte com a música desde sempre. Gosto de compositores, como o Arnaldo e o Caetano, porque sinto que a poesia deles, embora dura, sólida, concreta, nasce com ritmo e essa mesma sombra melódica, me identifico. Tigresa e Cajuína do Caetano são ótimos exemplos para entender isso. O poema é maior que a canção, faz brotar a canção e não é apenas uma parte da canção.

Desde quando você escreve?

Eu escrevia bastante no início da adolescência, mas uma má experiência com uma professora  me fez perder o interesse pela língua portuguesa. Foram muitos anos até retomar esse hábito. Fiz um curso de escrita criativa em 2016 que foi fundamental para eu acreditar que eu era mesmo capaz de escrever.

Como é o seu processo de escrita? Você acha que tem um estilo bem definido?

Ainda não sei definir meu estilo. eu diria que meu estilo é experimental.

Escrevo quando tenho vontade. Anoto ideias e vou desenvolvendo os textos a partir delas. Às vezes, os poemas nascem quase prontos. Revisito-os e reviso-os muitas vezes antes de entendê-los aptos a compor um livro.

Sou bastante bagunçado com a rotina. Escrevo mais no silêncio da madrugada, mas não é regra. Evito impor metas para evitar frustrações.

Quais são os próximos projetos? O que vem por aí?

Para o segundo semestre de 2023 quero trabalhar o lançamento do livro em saraus presenciais. E para além da literatura, tenho ideia de estrear um programa de entrevistas com poetas para falar exclusivamente sobre poesia e processo criativo. Mas isso ainda está em desenvolvimento.

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