Os filmes de Cláudio Assis têm como principal característica o olhar cínico e crítico tingido com cores quentes e corroborado por mensagens ácidas proferidas pelos personagens como que ao acaso. Essa dialética embutida em sua linguagem cinematográfica – cruza do naturalismo de Aluísio de Azevedo com os filmes-mosaico de Robert Altman – arrebanha fãs, irrita detratores, mas não deixa ninguém indiferente. O cineasta pernambucano chamou a atenção em 2003 com visceral “Amarelo Manga” e lançou em 2012 a pérola “Febre do Rato”. Agora chega ao circuito exibidor “Big Jato” (Brasil, 2016), adaptação do livro homônimo de Xico Sá sobre um adolescente com alma de poeta em um cenário agreste do interior nordestino. Enquanto aflora sua verve artística, ajuda o pai com o serviço de desentupidor de fossas, já que banheiros com esgoto tratado são raros por ali.
Chiquinho se vê entre dois extremos: a rudeza do pai, que é contra a atividade criativa e valoriza apenas o trabalho pesado, pois é a única realidade que conhece, e o hedonismo do tio, que o incentiva, pois vê em seu talento um veículo para que ele se liberte daquele ambiente inóspito.
A busca pela liberdade da alma humana acuada entre a nobreza e a bestialidade é a pauta de primeira hora da obra do diretor. A cidade pequena que serve de cenário é um daqueles lugarejos do Brasil profundo onde o tempo parece não passar. No início do filme, quando vemos Chiquinho com seu pai na boleia do caminhão Big Jato (o nome da “companhia”) a impressão é de que a trama se passa há uns 40 anos, só nos damos conta da contemporaneidade quando Messi é citado pelo menino.
O material do ofício de Francisco – que tira a subsistência literalmente da merda – serve como uma cruel metonímia colocada por Assis na função catalisadora da questão existencial e, claro, de sua habitual veia crítica. Em concomitância com o deboche e o humor negro, está o niilismo agudo, a total descrença na sociedade que faz com que o menino crie seu próprio universo lírico para se proteger. Logo na abertura ouvimos sua voz em off dizendo que cria um mundo particular peculiar. Peculiar também é a forma um tanto surrealista como se constitui a realidade do município, que em certos momentos parece até existir em uma zona paralela. Até uma banda que supostamente influenciou os Beatles, os Betos, ali existe. E se ninguém prova que é fato, também não há quem prove o contrário.
A direção de Assis, amparada pela fotografia barroca de Marcelo Durst (de “O Homem da Capa Preta”, “Ação Entre Amigos” e “Benjamin”), extrai atuações reluzentes de Matheus Nachtergaele e Marcelia Cartaxo. Gigante da atuação, Nachtergaele entrega mais uma atuação maiúscula transitando entre dois papéis extremamente distintos com naturalidade.
Ambos funcionam, cada um a sua maneira, como porta-vozes do cineasta – é sua característica colocar suas ideias defendidas por algum personagem, como o poeta de A Febre do Rato, praticamente um alter-ego. E a sempre magnânima presença de Marcela é outro ingrediente que engrandece a trama. Há ainda a curiosa participação de Jards Macalé como um personagem chamado Príncipe, uma figura mítica, combinado de grilo falante, pequeno príncipe e poeta-profeta errante.E o jovem Rafael Nicácio também se mostra uma esolha acertada.
Big Jato não é tão colérico como ‘Amarelo Manga’ e o polêmico ‘Baixio das Bestas’, mas está longe de ser desprovido da contundência habitual de Assis. Além da aspereza, o sexo não foi esquecido e há até a nudez de uma menor de idade, que na verdade é só a personagem, pois a atriz já tem 23 anos. Como todo filme de Assis, esse possui em sua divulgação um slogan que o define: “um filme que fede realidade e cheira sonho”. Um paradoxo bastante adequado e o endosso do amadurecimento artístico de um dos principais cineastas brasileiros em atividade.
Filme: Big Jato
Direção: Cláudio Assis
Elenco: Matheus Nachtergaele, Marcelia Cartaxo, Rafael Nicácio
Gênero: Drama
País: Brasil
Ano de produção: 2016
Distribuidora: ArtHouse
Duração: 92 min Classificação: 16 anos
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