Cheio de afeto, “Ennio, o Maestro” é obra maestra sobre Morricone

É possível alguém trabalhar sempre em estado de graça? Para nós, trabalhadores comuns e até um pouco enfadonhos, esta ideia de alcançar a graça no trabalho de cada dia é estapafúrdia. Mas alguns o conseguem, muitos dos quais fazem parte do mundo das artes. Uma destas pessoas que parece ter trabalhado sempre em estado de graça é o italiano compositor de trilhas sonoras Ennio Morricone. Cada uma de suas melodias que saem dos alto-falantes da sala de projeção enche o ambiente com mais do que música e preenchem nossa alma com algo que não pode ser comprado ou facilmente replicado. Ennio trabalhou com grandes mestres do cinema, como De Sica, Pasolini, Bertolucci, Lattuada, Leone e Tarantino, mas é através da câmera de Giuseppe Tornatore que vem uma homenagem perfeita ao maestro que nos deixou em 2020, mas que permanece eterno, graças ao seu trabalho.

Uma figura enigmática. Uma figura constante. Alguém que é sempre ele mesmo e, ao mesmo tempo, outra pessoa. Sério. A grande exceção a todas as regras. Um grande talento escondido, mas que se revela a cada composição. Gênio. Louco. São com estas palavras que os primeiros entrevistados do documentário, de diversas áreas de atuação dentro das indústrias da música e do cinema, se referem à Ennio Morricone nos primeiros minutos de projeção. Já então esperamos um documentário convencional, com suas cabeças falantes. O trunfo aqui vem do fato de a principal cabeça falante ser a do próprio Ennio.

Descobrimos que Ennio foi no caminho contrário de muitos criativos: queria ser médico, mas seu pai, também músico, o obrigou a estudar trompete no conservatório. O menino Ennio adormecia nas apresentações durante as partes que não exigiam o trompete. Substituiu o pai algumas vezes, e achou humilhante a experiência de tocar literalmente por migalhas. Foi seguindo o conselho de um professor que começou a estudar composição.

Entrou no mundo do cinema tocando nas orquestras que acompanhavam as projeções. Da sétima arte nunca mais saiu, apesar de ter passado pela banda do exército italiano e criado um grupo de improvisação musical. Trabalhou intensamente na gravadora RCA Italiana, onde fazia arranjos para as músicas. Seu modus operandi era único: com a música na cabeça, apenas olhava as teclas do piano e, sem tocá-las, escrevia a partitura. Em 1961, fez sua primeira trilha sonora solo para um filme e em 1963 musicou pela primeira vez não um, mas dois faroestes – assinando as trilhas de ambos com um pseudônimo.

Apenas um ano se passou e Ennio abandonou o pseudônimo ao trabalhar no primeiro filme da Trilogia dos Dólares de Sergio Leone – por coincidência, o diretor e o maestro haviam sido colegas de escola na infância. Ennio criava melodias a partir das imagens na tela, dando origem, às vezes, a mais de um tema para um único filme, e preferia trabalhar com o mínimo de notas possível. Abraçou a experimentação em suas trilhas, punha vozes de mulheres em destaque e enfrentava tudo como suas queridas partidas de xadrez: com lógica.

São mencionados e inclusive detalhados os desafios que Ennio enfrentou ao longo da carreira, desde o preconceito no conservatório por ser de origem humilde até o desprezo de outros compositores, que consideravam sua atividade de compor para o cinema como antiartística. Ennio, um homem à frente de seu tempo, afinal teve seu talento reconhecido, tanto é que alguns destes “detratores” se dispuseram a ser entrevistados para o documentário e reconhecer que estavam errados.

Da vida pessoal de Ennio, pouca coisa aparece. São excelentes as fotos antigas que mostram o futuro maestro na infância e adolescência, mas de resto prefere-se a discrição. Ennio era também discreto: casado apenas uma vez com a namoradinha de juventude – para quem sempre mostrava as composições de antemão, e cuja aprovação era o sinal verde para ele mostrar o trabalho aos diretores – teve quatro filhos, nenhum dos quais aparece na tela, embora dois deles trabalhem com cinema.

É louvável como o documentário se dispõe a destacar os mais diversos filmes da carreira de Morricone, ao invés do trabalho preguiçoso, porém fácil, de se ater somente aos filmes mais conhecidos. O maestro conseguia imprimir sua marca registrada em cada trabalho que fazia, e isso fica mais do que patente durante o documentário. Com esta escolha de escopo, evita-se que o documentário fique maçante, pois em suas mais de duas horas e meia de duração há informações que até os cinéfilos mais inveterados desconheciam.

Entre as cabeças falantes, gostaríamos de ressaltar as cantoras Joan Baez e Dulce Pontes. Com a primeira, gravou “Here’s to You”, um verdadeiro hino, e com a segunda fez a trilha de “Páginas da Revolução” (1995), último filme de Marcello Mastroianni. Cabe ainda, ao falarmos dos entrevistados para o documentário, o parênteses: é possível observar, com eles, o aspecto passageiro da vida. O próprio Ennio, lúcido e ativo nas entrevistas, não está mais entre nós, assim como Lina Wertmüller, Bernardo Bertolucci e Vittorio Taviani.

Ennio, o Maestro” evoca outro documentário italiano feito por um ícone sobre outro ícone, seu amigo: “Que Estranho Chamar-se Federico” (2013), dirigido por Ettore Scola, que se baseou em suas memórias e seus sentimentos pelo mestre para fazer esta homenagem. No caso de Ennio, Tornatore – com quem fez os brilhantes “Cinema Paradiso” (1988) e “A Lenda do Pianista do Mar” (1998) – é uma das cabeças falantes, e destaca que se sentiu muito acolhido por Morricone quando era ainda um recém-chegado no mundo da sétima arte. São assim os documentários mais emocionantes: cheios de afeto genuíno.

Não é preciso ser um músico nem profundo conhecedor do cinema italiano – no qual Morricone trabalhou a maior parte da carreira, tanto é que só ganhou um Oscar competitivo ao ir para a Hollywood “mainstream” – para gostar do documentário. Você vai se emocionar, se surpreender e inclusive descobrir qual foi o único filme que Morricone queria ter feito a trilha sonora, mas não fez. E talvez se convença, como o documentário faz questão de frisar em mais de um momento – que (G)Ennio Morricone foi um dos maiores compositores de todos os tempos, à altura de Mozart, Chopin e Bach.

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