O filme de abertura da 14a edição do Festival Internacional Olhar de Cinema, foi Cloud – Nuvem de Vingança, do cineasta japonês Kiyoshi Kurosawa.
Em um vídeo-depoimento, logo antes da sessão começar, o diretor mencionou algumas questões e preocupações que quis explorar no filme. Falou sobre a constante dubiedade entre bem e mal, sobre a universalidade da situação temática, do seu desejo de construir uma linguagem de entretenimento, ainda que não na mesma escala e pirotecnia Hollywoodianas, e do seu apreço pelo protagonista. Segundo ele, a neutralidade expressiva do ator Masaki Suda carrega uma ambiguidade essencial à compreensão da personagem.

Então vamos lá.
O filme nos apresenta Ryôsuke Yoshii (Masaki Suda), trabalhador de uma fábrica que, no seu tempo livre, aproveita para revender, pela internet, produtos, muitas vezes de origem ou qualidade duvidosa, a preços muito mais altos e exorbitantes do que os originais ou justos, sob o pseudônimo Ratel.
Aos poucos, e motivado por uma operação de sorte, a ambição e a desejo do lucro levam Yoshii a largar seu emprego, dispensando a possibilidade de assumir um cargo de gerência e um aumento, em prol desse caminho mais arriscado, mas potencialmente mais rentável. Pra além dessa busca por resultados imediatos, fica clara também a força exercida pelo elemento do vício, intrínseco às operações rápidas e arriscadas que esse tipo de aposta oferece.
De forma fria, é possível dizer que a atividade exercida por Yoshii é uma versão de práticas comuns e corriqueiras em nossa sociedade capitalista e neoliberal. Se aproveitar da ignorância/ingenuidade dos outros e de situações em que se sabe que um determinado produto vai subir de valor ou enganar a pessoa de quem está comprando pra poder lucrar faz parte das muitas brechas éticas que encontramos diariamente no nosso mundo. E é exatamente nesse lugar do comum que o absurdo do filme vai agir.
A banalidade de suas ações, tão naturalizadas na nossa realidade, encontra como resposta dramática (em vários sentidos) o ódio dos consumidores e o desejo de vingança. A partir de um determinado momento, parece que todos à sua volta querem lhe fazer mal, o que nos leva a um possível comentário do filme: quando se envolve com o submundo, fica difícil confiar em alguém e até pedir ajuda.
A narrativa escala rapidamente de um cotidiano trivial pra um suposto thriller de suspense e ação. Mas faz isso de forma quase anunciada, programática e, pra mim, sem nenhuma fluidez. Se por um lado, eu poderia achar interessante ele não usar elementos habituais (ou óbvios) como uma trilha sonora que ajuda a aumentar a tensão ou cortes que intensificam surpresas, por outro, senti que o filme vai levando as personagens pra onde quer de modo um pouco forçado, sem uma relação direta de causalidade e desproporcionalmente a suas atitudes.
Logo na transição do primeiro pro segundo ato, as personagens já começam a se apresentar de forma caricaturesca, sobretudo a personagem feminina, abertamente interesseira e artificial (a ponto de me lembrar a Lisa, de The Room).
O filme é marcado pelo exagero, pelo non sense e pelo ridículo, características que eu suponho que estejam ligadas ao desejo de trazer entretenimento e comicidade. Entretanto, o ritmo é lento e enfadonho. Há um constante desencontro entre o que o gênero no qual ele se insere propõe e o que ele de fato entrega.
Uma amiga que estava na sessão disse que o filme parecia Cães de Aluguel japonês. Esse comentário faz todo sentido quando conectamos elementos cenográficos e também dessa matilha de homens armados buscando um culpado pra se vingar. E pensando nisso, comecei a perceber o quão potencialmente engenhosa é essa estrutura dramática. Ele não constrói as personagens de modo a nos suscitar empatia. Diferente dos filmes de Tarantino, em que as personagens são marcadas por trejeitos, elegâncias e outras características que nos seduzem, os de Kurosawa são totalmente descartáveis. O que me faz pensar, de modo teórico e racional, que a intenção do diretor era fazer uma crítica, não apenas à temática da contravenção, como também a esse tipo de filme que usa a vingança e a morte como entretenimento.
E acabo me perguntando:
Esse filme é chato ou isso faz parte do conceito? Será que, então, ele é intencionalmente anticlimático?
Sinceramente, fiquei sem uma resposta precisa. Posso acreditar que ele está operando exatamente nesse lugar fronteiriço, entre a seriedade e a ironia. Mas falando estritamente de experiência estética, pra mim, foi difícil aguentar as duas horas de filme… Sobretudo enquanto eu estava entendendo que o non sense e o exagero deveriam estar sendo recebidos como algo engraçado ou divertido.
Não conheço a obra (muito apreciada) do diretor. Então vou ficar devendo uma resenha mais fundamentada.

Mas enquanto isso, compartilho algumas reflexões interessantes suscitadas pela trama:
O título evoca a ideia de nuvem como o espaço imaterial onde arquivamos coisas na internet, um espaço quase sem lei, onde o anonimato pretende ofuscar a responsabilidade das atitudes, mas também pode ser pensada como uma nuvem que nos impede de enxergar nossa realidade, interferindo com nossa visão e discernimento.
Só porque algo ocorre no dia a dia, isso não quer dizer que seja normal, no sentido do normativo, do que deveria ser uma ação padrão. O diretor “brinca” com isso criando um cenário de terror e ação no qual cidadãos comuns se tornam vingadores violentos e inescrupulosos. Pessoas que pegam em armas pra tratar a realidade como um jogo de videogame (conselho de um dos “justiceiros”).
Ninguém se salva ali. Todos partilham a pequeneza do espírito de porco. Não se coloca a questão de quem está certo ou errado. Estão todos participando de um sistema movido pela ganância e isso, por si só, já parece condená-los.
Estas são personagens trágicas, fadadas a seguir o caminho da ambição traçado por eles mesmos. E como mecionou o diretor, a história de Yoshii poderia ser a de muitos outros no Japão. Por isso, lembre-se: não importa o tamanho do crime, é a essência dos gestos que acaba nos levando pra uma estrada sem volta e sem redenção.









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