Quando se pensa no Batman, não tem jeito. Automaticamente, o outro nome que vem à maioria das mentes é de seu maior rival: o Coringa. Afinal de contas, o Príncipe Palhaço do Crime, criado por Jerry Robinson, Bob Kane e Bill Finger em 1940 logo se destacou como um dos vilões mais marcantes nos quadrinhos não só pelo seu visual exuberante mas também pelo requinte de crueldade em seus crimes, com pitadas de ironia e humor negro. Embora tenham atenuado nas tintas durante o período em que o personagem se popularizou com a versão galhofeira de Cesar Romero no seriado de TV da década de 1960 (e também algum tempo depois do final do show), logo o vilão voltou a mostrar sua face mais sinistra, que causa repulsa, mas também fascina e seduz até hoje.
Um dos motivos para isso foram as performances de Jack Nicholson e Heath Ledger nas superproduções mais famosas do Cavaleiro das Trevas na telona. Mas nem Tim Burton nem Christopher Nolan seriam capazes de dedicar um filme apenas ao criminoso da maneira que Todd Phillips fez com “Coringa” (“Joker”, EUA/2019), que buscou dar uma visão mais humana e trágica ao personagem, que renega, mas também respeita, tudo o que já foi feito com ele em diferentes mídias. Além disso, o filme se valoriza com um ator que está em estado de graça e entrega um de seus melhores trabalhos na carreira, daqueles que ficam na memória, reverberando na cabeça do espectador que for assistir a essa obra forte, dramática e impactante, como não se via há muito tempo numa adaptação de quadrinhos.
A trama é centrada em Arthur Fleck (Joaquin Phoenix), um comediante que busca o sucesso e trabalha como palhaço para uma agência para sobreviver, na parte menos nobre de Gotham City. Ele vive com a mãe idosa e doente, Penny (Frances Conroy), e sonha em, um dia, participar do talk show de Murray Franklin (Robert De Niro), um dos programas mais populares da TV. Além disso, Arthur começa a se interessar por sua vizinha, Sophie Dumomd (Zazie Beetz). Só que ele possui um distúrbio que o faz rir incontrolavelmente nos momentos mais inusitados e apresenta um comportamento antissocial. Uma noite, ele acaba tomando uma atitude que muda a sua vida irreversivelmente e, por causa disso, uma série de eventos acontece e que vão levá-lo a adotar uma nova identidade: o Coringa.
Mais conhecido por suas comédias, como a trilogia “Se Beber, Não Case” e “Um Parto de Viagem”, o diretor Todd Phillips vem trabalhado nos últimos anos de que é capaz de realizar trabalhos mais instigantes, como o interessante (mas pouco visto) “Cães de Guerra”, que misturou drama e humor para contar uma história real. Mas em “Coringa”, o cineasta realmente se mostra capaz de conduzir espetáculos bem mais complexos, tanto tecnicamente quanto dramaturgicamente. Aqui, ele constrói um clima tenso e decadente na Gotham City mais realista já mostrada na tela grande. Com ares de Nova York dos anos de 1970 (a aparição do logo antigo da Warner Bros. nos primeiros segundos de projeção deixa isso muito bem claro), a cidade não esconde que o caos já tomou conta das ruas e é uma questão de tempo para que tudo vá pelos ares. Essa sensação de urgência ajuda o público a embarcar na história de Arthur e entender porque o clima hostil acaba influenciando os atos do protagonista.
Além disso, Phillips emula com bastante talento o cinema feito nos anos 70, quando Hollywood passou a desenvolver obras mais ligadas às questões sociais da América, como “Taxi Driver”, “Touro Indomável” e “O Rei da Comédia”, de Martin Scorsese; “Operação França”, de William Friedkin, ou “Perdidos na Noite”, de John Schlesinger. Até mesmo clássicos como “Laranja Mecânica”, de Stanley Kubrick ou os filmes de Charles Chaplin, influenciam na direção e no roteiro, também escrito por Phillips e Scott Silver. O texto, aliás, se destaca por ser um excelente estudo de personagem, dissecando a mente de Arthur e revelando as camadas que explicam porque ele se torna o terrível criminoso que todos conhecemos.
Além das referências cinematográficas, os roteiristas se inspiraram em graphic novels clássicas como “Batman: O Cavaleiro das Trevas” e “Batman: Ano Um”, de Frank Miller, que ajudam a criar um laço entre a trajetória de Arthur e a família Wayne, cuja figura mais representativa da trama é a de Thomas Wayne (Brett Cullen), que representa os abastados de Gotham City e acreditam ter a solução para a cidade. O roteiro também tem inspirações em outra grande obra dos quadrinhos: “V de Vingança”, de Alan Moore e David Lloyd. No entanto, a principal história que norteia “Coringa” é mesmo “A Piada Mortal” (também de Moore, junto com Brian Bolland), a mais celebrada versão da origem do Príncipe Palhaço do Crime, que defende a tese de que um dia ruim pode fazer uma pessoa já com problemas psicológicos mergulhar nas trevas e nunca conseguir sair delas. Assim, o filme mostra a jornada distorcida de Arthur para se tornar alguém memorável. Mesmo que, para isso, tudo desabe a seus pés.
Não há o que discutir sobre a impecável parte técnica de “Coringa”. Não só a direção e o roteiro são acima da média como também a fotografia de Lawrence Sher, que trabalha bem a luz e as sombras das cenas, deixando-as com um tom envelhecido e conveniente para a ambientação da trama, assim como alguns enquadramentos e movimentos de câmera muito bem realizados. Vale destacar também a trilha de Hildur Guðnadóttir, que ajudam a deixar as sequências bastante tensas e desconfortáveis, principalmente às que mostram a gradativa loucura de Arthur se tornando cada vez mais evidente.
Depois de passar alguns anos com interpretações abaixo de seu talento ou protocolares (talvez excetuando suas participações nos filmes de David O’ Russell, como “O Lado Bom da Vida”), Robert De Niro volta a impressionar como Murray Franklin e esbanja carisma no papel do apresentador de talk show que o protagonista adora assistir. Frances Conroy também se sai muito bem num papel coadjuvante e convence ao transmitir a fragilidade da mãe de Arthur. Brett Cullen incorpora corretamente a arrogância de Thomas Wayne, que parece não entender ou perceber os reais problemas que Gotham enfrenta. Já Zazie Beetz, embora simpática, pouco tem a acrescentar como Sophie, uma pena.
Mas o grande show é mesmo de Joaquin Phoenix, que fascina e hipnotiza o espectador desde a primeira cena em que aparece. O ator mostra as diversas nuances de Arthur com maestria e convence, num só olhar, que chamas negras estão consumindo sua alma aos poucos e que todas as provações que passa no desenrolar da história apenas fortalecem o seu lado sombrio, que vai ganhando cada vez mais força, ao mesmo tempo em que o público pode chegar a ter compaixão por ele. Mas não se enganem. Apesar da fragilidade e da falta de sorte, Arthur tem graves problemas e pode ser uma ameaça para todos. E isso Phoenix transmite com segurança e muito talento. Basta ver, por exemplo, os ataques de fúria inesperados que pegam todos de surpresa.
Phoenix também impressiona pela sua entrega física. Afinal, não tem como passar incólume nas cenas que mostram como o ator emagreceu para o papel e também naquelas em que dança vestido de palhaço. Isso sem falar em sua gargalhada doentia, que incomoda pelo fato de que nem sempre ele está querendo realmente rir. É notável também como o ator cresce quando passa a usar a maquiagem de Coringa, que parece fazê-lo se tornar mais forte e dono de si, mesmo com a sua notável fragilidade. Certamente, o trabalho de Phoenix é um dos melhores de 2019 como ator e ele deve ser, pelo menos, indicado a todos os principais prêmios, como o Oscar e o Globo de Ouro em 2020.
Mesmo que alguns reclamem do fato de que algumas questões mostradas sejam até previsíveis (especialmente para aqueles a narrativas cinematográficas), não dá para negar que “Coringa” é um espetáculo impactante e que deve reverberar nas mentes de quem assistir nos cinemas. Quem for esperando ver apenas mais uma adaptação de quadrinhos, vai se surpreender por receber um drama denso, que envolve por ser muito mais profundo do que o que é produzido em Hollywood nos últimos tempos. Parece que, desta vez, o Príncipe Palhaço do Crime riu por último.
Cotação: Excelente.