Crítica: Estranho Caminho (2023), de Guto Parente

ESTA CRÍTICA TEM SPOILERS

Foi com estupefação que olhamos para trás e descobrimos que foram pouquíssimos os filmes que foram feitos sobre o contexto da gripe espanhola que assolou o mundo entre 1918 e 1920 – e afetou sobremaneira o cinema. Não houve catarse cinematográfica no passado, mas com a recente pandemia do coronavírus foi diferente: essa catarse começou ainda durante o evento fatal, em filmes a exemplo de “Coma” (2022), escrito e dirigido no isolamento pelo francês Bertrand Bonello. Não é, pois, de se espantar que filmes pandêmicos estejam ainda chegando aos circuitos de exibição. O mais recente deles a estrear é o nacional “Estranho Caminho”.

Vindo de Portugal para sua Fortaleza natal exibir um de seus filmes em um festival de cinema, David (Lucas Limeira) vê seus planos prejudicados pelo decreto do lockdown nos primeiros tempos de pandemia. Tendo seu voo cancelado e vendo-se sem lugar para ficar, ele vai atrás do pai, Geraldo (Carlos Francisco), que há muito tempo não via, em busca de abrigo. Apesar de hostil, Geraldo aceita que David fique com ele por tempo indeterminado.

Geraldo digita algo freneticamente e proíbe David de chegar perto do computador. Ele é acometido por uma tosse incessante e precisa ser internado. Na ausência paterna, um solitário David vasculha o apartamento e descobre uma faceta de Geraldo que não conhecia… Até que um telefonema do hospital vira o mundo dele de cabeça para baixo.

Alguns momentos são bem curiosos, e destaco aqui quando os personagens fumam um baseado seguindo todos os protocolos de segurança. Outro momento assim ocorre quando um saxofonista passa tocando em cima de um caminhão, levando arte às pessoas confinadas. E mais outro acontece quando um doente recebe alta e aplausos por ter vencido o vírus. É o absurdo que aconteceu de verdade, e estamos aqui para voltar a testemunhá-lo.

Ganhador de vários prêmios no Festival de Cinema de Tribeca, entre eles Melhor Filme, Roteiro, Fotografia e Performance para Carlos Francisco – marcando a primeira vez em que um filme brasileiro foi premiado em Tribeca. No Festival do Rio, “Estranho Caminho” foi vencedor nas categorias de Melhor Roteiro e Ator Coadjuvante. Na Mostra Autorias do Festival de Tiradentes saiu também laureado como Melhor Filme.

A virada na narrativa é audaciosa, mas não se sustenta nem se justifica. Aliás, até se justifica: o diretor Guto Parente dedica o filme ao pai, que também se chama Geraldo. Sobre seu processo criativo e a presença do elemento fantástico em “Estranho Caminho”, Guto explica:

Eu gosto de misturar as coisas, o cinema narrativo com o experimental, o realismo com a fantasia, o humor com o espanto. A cada filme gosto de poder trabalhar com elementos diferentes, testando combinações improváveis e descobrindo novas possibilidades. Criar sem experimentar é reproduzir. A experimentação está no cerne da criação e é onde podemos assumir os riscos mais interessantes. Sem medo de errar. Ou buscando errar cada vez melhor. O fantástico é o que se encontra entre o maravilhoso e o extraordinário, é o lugar da dúvida, da hesitação, do mistério sem solução. A pergunta que gera uma nova pergunta, que gera uma nova pergunta.”

A virada ao final coloca tudo o que vimos em xeque. É, como o deus ex-machina mais preguiçoso de todos, o “foi apenas um sonho”, um recurso narrativo que não agradará a todos – não me agradou, por exemplo. Ele muda radicalmente todo o compromisso que o filme tinha estabelecido com a realidade. Sim, “Estranho Caminho” tem seus méritos – como a descentralização geográfica por ser um filme totalmente rodado em Fortaleza – mas seu final definitivamente não é um deles.

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