Dono de uma filmografia impecável, tanto como ator quanto por diretor, Clint Eastwood sempre foi um homem de personalidade forte, que não se incomoda com o que vão pensar sobre o que diz ou o que faz. Portanto, não é nenhuma surpresa ele ter aceitado assumir a direção de “Sniper Americano” (“American Sniper”), baseado na autobiografia de Chris Kyle (co-escrita por Scott McEwen), considerado o melhor atiraador de elite dos Estados Unidos que, oficialmente, matou 160 pessoas durante missões no Oriente Médio. Ainda mais que o próprio Kyle (morto em 2013) teria dito que ninguém mais, além do cineasta de “Os Imperdoáveis”, “Menina de Ouro” e “As Pontes de Maddison”, poderia dirigir um filme sobre a sua vida. O resultado final mostra que, apesar de estar com 84 anos, Eastwood ainda tem muita energia e é capaz de realizar um ótimo trabalho, apesar do tema espinhoso.
O filme mostra praticamente toda a trajetória de Kyle (Bradley Cooper), desde quando era criança e aprendeu a atirar com o pai e sua tendência a se meter em brigas para proteger seu irmão, Jeff (vivido na fase adulta por Keir O’Donnell). Anos depois, com o sonho frustrado de se tornar um cowboy, Kyle acaba se alistando na Marinha após ver na TV ataques terroristas a embaixadas americanas na Tanzânia e no Quênia. Decidido a fazer a diferença, ele entra para o SEAL, grupo de fuzileiros navais dos EUA, onde supera um treinamento intenso e surpreende a todos por suas qualidades como atirador. Neste meio-tempo, ele conhece Kaya (Sienna Miller), por quem se apaixona e logo se casa com ela. Mas Kyle é chamado para a sua primeira missão no Iraque e é aí que começa a ser conhecido e temido por todos pela sua pontaria e sua determinação contra os seus inimigos. Chamado de “A Lenda” pelos outros militares, ele chega a ter a sua cabeça posta a prêmio pelos terroristas após suas várias execuções. Aos poucos, Kyle fica cada vez mais envolvido com o clima de guerra e se distancia da esposa e dos filhos, o que gera alguns atritos sempre que volta para casa, já que sua mente ainda está presa ao combate.
O que causa um verdadeiro incômodo em “Sniper Americano” para alguns espectadores é o fato de que o filme, à primeira vista, parece glorificar os feitos de Chris Kyle, os militares americanos e pode soar como uma propaganda patriótica que justifica a presença dos EUA no Oriente Médio. Mas, na verdade, Eastwood quer mesmo mostrar que a guerra, não importa qual seja, produz situações terríveis e absurdas, onde as pessoas parecem perder a sua humanidade em prol de algo que nem mesmo elas compreendem, em nome de seu país. Chris Kyle foi o melhor exemplo disso, já que, na vida real, acreditava que as pessoas que matou eram todas ruins e ele estava apenas fazendo o seu trabalho, que era proteger seus companheiros. O filme deixa isso bem claro ao retratá-lo como como um homem extremamente comprometido com sua missão, a ponto de estar sempre tenso, quando está em sua vida civil. Uma das cenas que melhor retrata isso é quando Kyle se desespera na maternidade, ao ver a filha recém-nascida chorar no berço e as enfermeiras, que estavam ocupadas com outros bebês, parecem ignorá-la.
Assim como o protagonista de “Guerra ao Terror”, vencedor do Oscar de Melhor Filme de 2008, Kyle é retratado como um homem que se viciou no combate e não consegue nunca se desligar. Eastwood transmite isso muito bem na tela, como numa sequência tensa em que o protagonista está numa festa com a família e parte para cima de um cachorro que está brincando com o seu filho. Outro momento exemplar do filme é durante um confronto no meio de uma nuvem de areia que é levantada devido a disparos de ambos os lados e o diretor chega a utilizar o efeito “bullet time”, que ficou popular após “Matrix”, mas de um ângulo diferente. O cineasta só peca, no entanto, ao utilizar bonecos para representar os filhos de Chris e Kaya ainda bebês em duas cenas. Mesmo a pessoa que for pouco observadora não vai deixar de notar o esforço dos atores em contracenar com os bonecos, na tentativa de torná-los reais. Essa é uma pequena bola fora do filme, que pode até causar risos para o público em geral.
Uma das falhas do roteiro de Jason Hall é que, tirando Chris e Kaya, os outros personagens não são mais aprofundados, como o irmão do protagonista, Jeff, que, ao contrário dele, fica traumatizado com suas idas ao Oriente Médio e aparece apenas em uma cena tentando avisá-lo de que eles se meteram numa situação infernal. Ou mesmo os seus “inimigos”, que são mostrados apenas de maneira bidimensional. Eles são maus e pronto, como Mustafa, o atirador dos terroristas. Não há a visão do outro lado do conflito, um erro que geralmente acontece em produções como essa, o que realmente gera o incômodo e o roteirista perdeu a chance de fazer algo diferente da visão do livro em que se baseou.
No elenco, o destaque vai mesmo para Bradley Cooper, como o controverso protagonista. Para interpretar Chris Kyle, ele ganhou peso e massa muscular, além trabalhar bem o sotaque texano do atirador de elite. Além disso, o ator conseguiu transmitir pelo rosto a tensão constante que seu personagem vivia, mesmo em família, e soa autêntica, num determinado momento da trama, a sua vontade de ser mais presente para a esposa e os filhos, assim como o incômodo que sentia quando seus colegas o elogiavam por suas ações. Por isso, essa é a sua melhor atuação até agora (descontando, é claro, quando fez a voz de Rocket Racoon em “Guardiões da Galáxia”). Já Sienna Miller, embora defenda bem sua personagem, não tem muito o que fazer, a não ser na cena em que, grávida, se desespera ao ouvir um confronto enquanto fala com o marido por telefone. Os outros atores estão apenas corretos, mas nada marcantes.
“Sniper Americano” é um filme que faz mais sentido aos americanos do que a outros povos porque eles cultivam a figura do herói de forma mais enfática e isso é um dos motivos de seu grande sucesso de bilheteria nos EUA. Mas quem conseguir ver além das questões patrióticas, testemunhará mais um grande feito de Clint Eastwood, que dá de ombros para o que pensam dele, mas se preocupa, sim, em realizar obras impecáveis (apesar dos bebês-bonecos) e sua visão como cineasta nunca deve ser desprezada ou inferiorizada. Portanto, deixe o preconceito de lado e aproveite mais um bom trabalho de um dos grandes durões do cinema.