“Deixe Ela Entrar” ou Como Vampiros Ainda Podem ser Legais

cartaz1A cultura de massa é atacada constantemente por modismos em surtos esporádicos que se espalham mundialmente em uma velocidade assustadora, principalmente após a popularização da internet.

Comumente esses modismos são eventos cíclicos que, tornam a se repetir de tempos em tempos infestando e  saturando a mídia em menores frestas. O mais recente desses eventos a retornar dos mortos (com o perdão do trocadilho) e ganhar destaque mundial é o vampirismo, aquele que talvez seja a quintessência dos arquétipos relacionados ao desejo do homem pela imortalidade.

No final da década de 80 até meados dos anos 90 o cinema e a literatura pop já haviam sofrido com um surto de vampirismo em grande parte impulsionado por um sem número de livros, todos de qualidade questionável, publicados pela escritora estadunidense Anne Rice, especialista em vampiros problemáticos mamão com açúcar. Dessa epidemia vampiresca surgiram coisas muito boas no cinema como Entrevista com o Vampiro e Drácula de Bram Stoker, no quesito vampiros-bonitinhos-que-todos-queríamos-ter, o clássico do Cinema em Casa, Garotos Perdidos, que acho muito legal por mostrar um lado mais animalesco e cruel, e claro, a paródia genial de Robert Rodriguez Um Drink no Inferno, que revisita o grind dos filmes “B” setentões.

Depois, por durante quase dez anos o tema caiu quase no esquecimento, dando lugar as adaptações toscas de filmes de terror japoneses e videogames mais toscos ainda. Não que nada tenha sido produzido, afinal Blade, Underworld e alguns outros longas-metragens até que conseguiram algum público fiel, contudo foi mesmo em meados da primeira década do século XXI que a coisa voltou a ficar boa para os dentucinhos, sem necessariamente ser boa para o público.

Como quase duas décadas antes, agora o tema também ganhava proporções mundiais através da literatura, esta também de qualidade questionável e também mamão-com-açúcar. Foi através das obras publicadas por Stephenie Meyer, com sua saga crepuscular (hoje estou com tudo e não estou prosa), e Charlaine Harris, com seus vampiros cajuns bonitões e saidinhos que novamente a bandeira dos suga-sangues foi alçada. Daí para produzirem uma dezena de filmes, séries de TV, broches e calcinhas com “Bite Me” bordado em rosa-choque foi um pulo.

Mas, eis que de toda a pieguice vampírica atual, do grande nada gelado (leia-se Suécia), surge pelas mãos do diretor Tomas Alfredson aquele que promete ser o filme da década sobre o assunto.

Deixe Ela Entrar (Låt den Rätte Komma In, 2008), cujo título poderia ter ficado muito mais bacana se traduzido ao pé da letra como Deixe A Pessoa Certa Entrar,  ou algo do tipo, com sua argumentação tensa e bem justificada e seus personagens bem construídos é por sua vez o oposto dos caça-níqueis americanos voltados apenas para o simples entretenimento.

oskar

Logo no início do filme conhecemos Oskar (Kåre Hedebrant), um menino de 12 anos, pálido e retraído, cujos problemas de relacionamento com seus colegas de escola o levam a esfaquear uma árvore como tentativa de revide e expiação.  É durante um desses momentos de desabafo solitário que o garoto conhece Eli (Lina Leandersson), uma nova vizinha com hábitos estranhos, como andar descalça na neve e ter as janelas de seu quarto fechadas com folhas de papelão.

Conforme a sensação de solidão cresce, seja ela causada pelas paisagens áridas ou pela assoladora ausência de contato interpessoal, as relações entre os dois personagens estreitam-se, como se reconhecessem um no outro um último lastro de humanidade. Enquanto Oskar opta pelas frias e solitárias brincadeiras fora de casa, deixando a mãe e a televisão para trás, Eli o procura cada vez mais por sentir uma conexão com o garoto. A vampira pré-adolescente aos poucos vai dando pistas de sua real identidade à Oskar, mas este se mostra despreocupado, interessado primeiramente na companhia e cumplicidade da garota.

O roteiro de John Ajvide Lindqvist, adaptação de um livro homônimo de sua autoria, exige do espectador a interpretação de certos fatos, não os dá mastigados de bandeja. Exemplo disso é a relação das crianças com suas respectivas figuras paternas.  Oskar parece se sentir muito bem quando está com seu pai, mas quando outro personagem masculino se coloca no meio dessa relação, o garoto entra na defensiva, sugerindo uma possível relação homossexualidade entre os adultos. Já no caso de Eli, a figura que identificamos por seu pai, poderia com alguma interpretação ter sido outro envolvimento da menina, que esteve ao seu lado por muito tempo enquanto envelhecia, contemplando a imortalidade dela.

eli

Lindqvist ainda se mantém fiel ao mito do vampiro, como no fato a criatura não poder entrar em um lugar sem ser convidada e sua alergia ao sol (nada de brilhar aqui, obrigado), e ainda realça ainda seu lado como um predador. Isso cria um paradoxo ao vermos uma garotinha que deveria ser frágil, agindo como um animal.

Alfredson por sua vez, mantém a linha da direção por todo filme. Sua predileção por cenas lentas e closes que mais escondem do que mostram alguma coisa, valorizando o significado de cada fala e gesto. Mostra ainda uma grande habilidade na condução de jovens intérpretes, ao exigir de ambos que seus personagens se tornem críveis. Em uma cena em especial, Oskar obriga Eli a entrar em sua casa sem ser convidada, mesmo sabendo que ela não poderia fazer aquilo, apenas por um desejo cruel de saber o que aconteceria se ela tentasse.

O filme sueco, com estréia em circuito nacional prevista para 02 de outubro, foi tão positivamente criticado que, a exemplo do espanhol [REC], ganhará sua versão nas telonas hollywoodianas em breve, obviamente aproveitando também o gancho do fenômeno teen, Crepúsculo. Prova inabalável da crise de criatividade que passa o cinema americano, que após décadas de domínio internacional, parece ter encontrado a exasperação de suas fórmulas. Por isso, aproveite para ver o original enquanto pode.

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