Adaptações cinematográficas de peças teatrais normalmente são arriscadas. Verifica-se que a proximidade com que o ator de teatro fica do seu público e como interage, mesmo inadvertidamente, com o mesmo são fatores que devem ser levados em conta. Deus da Carnificina (Carnage – 2011) felizmente consegue ultrapassar todas estas barreiras e se torna um filme memorável em todos seus aspectos.
Quando escolheu adaptar a peça “Le Dieu du carnage” de Yasmina Reza, o diretor Roman Polanski não teve dúvidas e chamou a própria escritora para ser roteirista do filme junto a ele. A união dos dois criou um filme que se passa, em grande parte de seus 80 minutos, dentro de um apartamento no Brooklyn, em Nova Iorque.
A história é simples. Duas crianças brigam em um parque da cidade e um deles acaba por arrancar dois dentes do outro golpeando-o com um pedaço de madeira. Os pais de ambos se encontram para resolver a situação.
Inicialmente os pais, ali reunidos, reduzem a termo o fato e tudo parece bem, até o momento em que o assunto deixa as crianças e passa para a vida dos adultos, denunciando as situações que boa parte de nós passa no dia a dia de forma simples, sem se dar conta dos absurdos que estão acontecendo.
O filme/peça de teatro é uma dura crítica a sociedade e a hipocrisia que passamos todos os dias, mostrando as máscaras que temos de vestir para passar uma imagem de integridade e bom senso. Há uma flutuação entre humor e drama no decorrer dos fatos que transcorrem dentro do apartamento e conforme tudo ocorre, percebe-se que aquele que parece ser o mais distante de tudo é aquele que na verdade está mais ciente dos fatos.
A atuação do quarteto de atores (sim, são só quatro atores no filme todo sem contar os extras nas externas) é memorável: Jodie Foster como a mãe da vítima, preocupada com os problemas do mundo a ponto de esquecer as nuances mais básicas do bom senso, e seu marido, John C. Reilly (Precisamos Falar Sobre Kevin), um vendedor de eletrodomésticos que parece ser a calma em pessoa, todo conciliador e carinhoso.
Christoph Waltz (Bastardos Inlórios) como o pai do jovem agressor, advogado de uma grande companhia farmacêutica que não desgruda de seu telefone e parece distante de tudo, junto de Kate Winslet (Contágio, O Leitor), a mãe que basicamente vive para cuidar da casa e do filho enquanto o marido se mata de trabalhar.
É necessário uma certa precaução ao se assistir esse filme. Ele entrega os atores e a platéia ao que há de mais crú no mundo, seja a exposição das máscaras de cada um, seja mostrando o que há em nosso âmago, prostrando em diversos momentos tanto atores quanto público.
A amargura que recai sobre cada um mostra que aquela velha frase de Plauto, popularizada por Thomas Hobbes é verdadeira: “O homem é lobo do homem” (Homo homini lupus). Em diversos momentos vemos exercícios de violência praticados entre os personagens, das mais diversas formas possíveis e imagináveis. Entenda que, quando se fala em violência, não se fala apenas em violência física. Um tapa no ego pode doer tanto ou mais do que um murro na cara.
As distorções de caráter e a manipulação dos fatos são apenas demonstrativos que vivemos expressamente em prol do nosso bem estar, sem estar demasiadamente preocupados com o que os outros pensam e querem. Nesse contexto, o advogado, sempre visto pela sociedade como o sacana, acaba sendo o mais sincero e honesto daqueles presentes na sala.
Um detalhe importante é o uso de planos abertos e closes pontuais por parte do diretor para trazer a sensação do teatro e o misturar com os detalhes que apenas uma câmera pode trazer ao público. Ainda assim, mesmo trazendo os closes, se percebe que o plano está cortado em profundidade, com algo sempre acontecendo ao fundo. Exemplo é a sutileza de colocar um espelho na sala e deixar a câmera focada no ator e de repente, no espelho, haver alguma interação. É o diretor focando em um aspecto, mas permitindo ao público que veja algo mais, se quiser.
Polanski é um diretor diferenciado e ele sabe trazer o melhor e o pior de cada um de seus comandados. Seu Deus da Carnificina funciona da mesma forma. Ele mostra o melhor e o pior de cada um de nós e ainda ficamos nos perguntando ao final se realmente aquela história se passa apenas naquele apartamento, ou se fazemos passar por ela, todos os dias, bastando apenas um empurrãozinho para podermos nos tornar intérpretes da mesma.
[xrr rating=4.5/5]
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