Se, felizmente, nós não nos lembramos mais de como era o mundo antes do Me Too, “Ela Disse” faz o trabalho de “refrescar” a nossa memória. Antes desse movimento, o assédio sexual sofrido pelas mulheres em diversos setores e ramos empresariais era de certa forma naturalizado.
O Me Too se tornou viral em outubro de 2017 como uma hashtag nas mídias sociais, na tentativa de demonstrar a prevalência generalizada de agressão sexual e assédio, especificamente no local de trabalho. O ponto alto foram as acusações de abuso sexual contra Harvey Weinstein, dono da Miramax. A frase, que em português significa “eu também”, foi mais tarde popularizada pela atriz estadunidense Alyssa Milano, no Twitter em 2017.
Adaptação do livro de mesmo nome, a trama de “Ela Disse” mostra como se deu a jornada das repórteres do New York Times Megan Twohey (Carrey Mulighan) e Jodi Kantor (Zoe Kazan) – que se tornaram autoras do livro – para contar uma das histórias mais importantes dessa geração, iniciando esse movimento que quebrou décadas de silêncio sobre o assunto de agressão sexual em Hollywood.
O comportamento de Weinstein era um dos segredos mais bem guardados de Hollywood. Por décadas, segundo relatos, o executivo usou o famoso “teste do sofá” com jovens atrizes aspirantes a estrelas. Mira Sorvino, por exemplo, perdeu um papel em “O Senhor dos Anéis” após recusar as investidas do executivo, quando a Miramax seria o estúdio responsável, antes de o projeto ser transferido para a New Line. Mais tarde o diretor Peter Jackson confirmou o corte no elenco. Com as denúncias, vieram à tona os casos de Gwyneth Paltrow, Angelina Jolie e dezenas de outras atrizes assediadas pelo produtor.
Como cinebiografia que cobre uma trama investigativa, a referência, como acontece recorrentemente há pelo menos 40 anos, é “Todos os Homens do Presidente”. E como Hollywood tem grande apreço por esse segmento, é bem provável que venha uma indicação ao Oscar.
Dirigido e escrito por mulheres, o longa cumpre satisfatoriamente a função de contar a história de forma condensada e simplificada (com suas inevitáveis liberdades poéticas, é claro), mas isso não significa que o roteiro de Rebecca Lenkiewicz (“Ida”, “Desobediência”) resvale no simplismo, ou carregue nas tintas dramáticas – embora em alguns momentos esteja à beira disso. No todo, o script conduz a trama no tom certo.
O comando da alemã Maria Schrader (“O Homem Ideal”) busca inspiração nítida no já citado longa de Alan J. Pakula, lançado em 1976, trazendo veracidade à abordagem, ainda que com as necessárias cores ficcionais, e uma direção de atores correta.
Carrey Mulighan e Zoe Kazan se mostraram boas escolhas de casting. Óbvio que a trama escolhe o viés heroico para retratar ambas as jornalistas e as atrizes procuraram imprimir humanidade em suas atuações, o que foi primordial para a empatia com o público e não deixar a veracidade escapulir. Vale ressaltar os bons trabalhos dos bons coadjuvantes Patricia Clarkson, que vive a editora do TImes, Rebecca Corbett, e Andre Braugher como o editor executivo Dan Basquet. Chama atenção que o segundo apresenta um tipo físico distinto de sua contraparte da vida real, que possui uma tonalidade mais clara de pele negra, contudo isso não possui relevância para a trama.
“Ela Disse” mexe em uma ferida ainda exposta dentro de Hollywood e mostra que o tema ainda merece ser discutido, pois há muito o que se avançar. Por mais que o êxito de Megan Twohey e Jodi Kantor ainda não seja suficiente para transformar as relações de poder no meio corporativo, é inegável que a saga da dupla foi um marco.
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