"Entre Nós" reflete sobre o peso de um dilema

Com alguns ajustes aqui e ali adquiridos com a experiência (leia-se erros) de vida, você é aquilo que foi na juventude. É um período conturbado, pois é ali que se molda a personalidade que acompanhará o indivíduo pelo resto de sua vida. Pode até haver uma mudança radical em certa altura, mas o paradigma será o que se viveu nos “anos dourados”. E quanto a juntar os amigos que nos acompanharam naquele período para ver quem casou com quem, quem engordou, envelheceu, se acabou, continua bonito, ou está ainda mais bonito? Chegar à conclusão que o tempo passou, para o bem ou para o mal, e inevitavelmente trazer antigos fantasmas à tona.  Revisitar o passado através de encontros com companheiros, e as implicações desses encontros, rende pano para a manga na ficção.

Temos como bons exemplos “Garotas de Futuro”, do diretor britânico Mike Leigh, e “Queridos amigos”, minissérie exibida pela Globo em 2008 adaptada do livro “Aos Meus Amigos”. Há também o ótimo “Declínio do Império Americano” do canadense Denys Arcand, que gerou a sequência “As Invasões Bárbaras”.

“Entre Nós” (Brasil/2014) se apropria desse mote. O filme começa em 1992, com uma turma de jovens reunida em uma casa na Serra da Mantiqueira, para celebrar o lançamento de um coletivo literário. Em meio a toda a farra, pegação, bebedeira e consumo de maconha que esse tipo de reunião acarreta, os jovens decidem depositar em uma caixa cartas enviadas para cada um de si no futuro, não permitida a revelação do conteúdo, para serem lidas ali mesmo, mas dali a dez anos. Mas uma tragédia ocorre e tira a vida de um deles. Dez anos depois eles se reúnem para lerem as cartas, mas não sem antes passarem no processo por uma terapia em grupo involuntária.

O diretor Paulo Morelli, que capitaneou a película ao lado de seu filho Pedro, acertou em cheio na direção, sobretudo na de atores. Estão todos no tom certo. As atuações são espontâneas, como pede o contexto, de modo que o espectador crê no vínculo existente entre os integrantes do grupo. Caio Blat defende seu personagem Felipe com galhardia, traduzindo em cada olhar o fardo que tem de carregar – não só por ter sido a testemunha e suposto culpado pelo acidente, como viver a sombra do talento do amigo, e ainda por cima viver com o peso de um dilema, também desencadeado pela tragédia. Esse dilema estremece sua relação com Lúcia (Carolina Dieckman, enchendo a tela). Os casais que estão formados nada mais são do que uma análise combinatória entre a turma, mas não necessariamente as escolhas mais acertadas. Gus (Paulo Vilhena, apenas ok) tem um relacionamento com Silvana (Maria Ribeiro,reluzente), porém ainda nutre devoção a Lúcia. Da mesma forma que Felipe não esqueceu Silvana e mantém a atração dos tempos de juventude. Cazé e Drica, aparentemente bem resolvidos em seu relacionamento, apesar de pequenas brigas, chegam a um sério impasse em relação a ter filhos. Ela quer, mas ele não vê sentido. O roteiro assinado pela dupla de cineastas é visceral e favorece as boas atuações de todo o elenco.

A fotografia também merece destaque. Assinada por Gustavo Hadba, a película inicia quase que emulando um super 8. Uma câmera em constante movimento circula quase que irresponsável, como se fosse um registro improvisado, feito por alguém inserido ali no meio do grupo. Na segunda fase da trama, não há mais a necessidade de um comportamento tão agitado das lentes, uma vez que aquilo traduzia também a urgência juvenil e seu pouco apreço a formalidades. A partir do momento em que há a passagem do tempo, a fotografia ganha um tom que muitos até comparam às atuais produções argentinas, mas no Brasil, na década de 70 temos exemplares semelhantes, que certamente serviram de inspiração aqui. A atmosfera e o andamento da película evocam aquela década. Note que em nenhum momento gadgets do século XXI são mostradas, como celulares e computadores. Apenas em um momento em que se fala em blog (em 2002 ainda não havia redes sociais).

Salvo um ou outro deslize, “Entre Nós” é um filme agradável de se ver, filmado com bom gosto e apuro. Se não chega a ser um marco na história do cinema nacional (e nem é esse o propósito), é uma bela injeção de ânimo em um mercado dominado pelas comédias de apelo e linguagem televisiva. Esse aqui é cinema.

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