Passados mais de 40 anos da criação da Nouvelle Vague francesa, esquecemos que este foi um movimento de cinema jovem. Pois o menino prodígio, Xavier Dolan, canadense de 21 anos, nos reaviva esta sensação com seu surpreendente Eu matei minha mãe (J’ai tué ma mère).
Surpreendente por vários motivos: é um filme que se passa quase que totalmente em cenários interiores estilisticamente arranjados, sua narrativa é composta por diálogos com um misto de crueza e lirismo, sentimentalismo e provocação e o enredo semi-autobiográfico é pontuado por interrupções pop-visuais que reciclam a estética avant-garde combinando-a com a técnica videoclipada youtubista…
Mas é sobretudo no tema que Eu matei minha mãe retira seu frescor: o choque de gerações, a distância entre pais e filhos, the generation gap, trazidos à ordem do dia neste filme que se centra quase que unicamente no conflito entre um jovem adolescente e sua mãe. Em época de relações cordiais e pseudo-amigáveis entre pais e filhos, unidos pela sincronização temporal de um consumismo infantil, um filme que trate novamente da guerra de gerações é como um estranho na paisagem, desconfortável como a vida de um adolescente.
Hubert Minel (Xavier Dolan) é um jovem de 16 anos, gay, tem um namorado de nome Antonin Rimbaud (não confundir com Artur Rimbaud nem com Antonin Artaud) que vive às turras com sua mãe Chantale (Anne Durval) com quem mora junto e sozinho, pois seu pai é ausente. Hubert gosta de escrever poemas, ouvir música pop fumando maconha, tem um gosto refinado por artes plásticas, enquanto sua mãe usa roupas bregas, vive a ver programas popularescos na televisão, frequenta banhos de bronzeamento artificial e compra artigos domésticos em liquidações. Sua casa, decorada em estilo absolutamente kitsch, é como um inferno para o avançado Hubert.
O problema é que Chantale, a mãe, aos olhos de Hubert, vive uma vida falhada e vazia, mas de forma completamente auto-satisfeita e dá pouca atenção às ambições, aflições e inconsistências de seu filho. Basicamente ainda o trata como uma criança e o insere em programas que ele não quer participar, sem lhe perguntar. As “conversas” entre os dois, nas refeições, soam sempre pobres e vazias, como diálogos entre surdos. Ou, em outras palavras, Chantale é simplesmente incapaz de enxergar que Hubert tem desejos, vontade e sexualidade própria.
É claro que a perspectiva da câmera favorece o rapaz que acumula as funções de autor, diretor e ator da história. Daí o frescor juvenil das cenas e da montagem que nos faz lembrar os filmes da Nouvelle Vague, em particular, François Truffaut. Uma das cenas do filme, quando Hubert mente à professora que sua mãe supostamente falecera, é uma referência direta a outra cena de Os Incompreendidos. Não por acaso, o nome do protagonista Hubert Minel evoca Antoine Doinel o ícone “protegée” de Truffaut. Tal como Hubert, Antoine também vive seu conflito eterno com mãe durante toda a série de 5 filmes que François Truffaut realizou com seu anti-herói parisiense. E como neste filme, também o personagem de Jean-Pierre Léaud é enviado por sua mãe a um colégio interno…
Mas o personagem de Dolan é o de um Antoine Doinel de quem viu muito Wong Kar Wai. As cenas em câmera lenta e sonoridade pop dramática abundam neste filme (curiosamente, numa entrevista, Xavier Dolan não cita nem Truffaut nem Kar Wai entre seus diretores preferidos e influentes…). Se os conflitos com a mãe levaram o personagem de Léaud a se tornar como adulto um mulherengo, a ser um “homem que amava as mulheres’, como aliás o próprio Truffaut, o prematuro gay Hubert Minel seguirá outros caminhos não menos passionais…
Hubert vive com dilaceramento a ambigüidade de, ao mesmo tempo, odiar e amar sua mãe e vai compreendendo, com certa violência, que amor e ódio são as duas faces do mesmo afeto. Um conflito quase insolúvel entre um filho que não nasceu para ser um filho e uma mãe incapaz de ser o que se espera de uma mãe. A Hubert restará a opção de cortar o cordão umbilical pela morte simbólica da mãe, assassinato mútuo do parentesco sanguíneo, única possibilidade para que ambos se reconheçam e se amem como duas pessoas com suas próprias singularidades, simultaneamente estranhas e próximas, irredutíveis aos papéis que a sociedade imemorialmente programou para os dois.