Festival do Rio 2025 – Chloé Zhao faz do cinema sua aquarela em “Hamnet”

A linguagem contemplativa de Chloé Zhao ficou amplamente conhecida com sua vitória no Oscar 2021 com o longa “Nomadland”. Após uma experiência inusitada na Marvel Studios, com “Eternos”, que até hoje divide opiniões, a cineasta retorna com um título que pode ser chamado literalmente de “filme de arte”. “Hamnet: A Vida Antes de Hamlet” revisita…


A linguagem contemplativa de Chloé Zhao ficou amplamente conhecida com sua vitória no Oscar 2021 com o longa “Nomadland”. Após uma experiência inusitada na Marvel Studios, com “Eternos”, que até hoje divide opiniões, a cineasta retorna com um título que pode ser chamado literalmente de “filme de arte”. “Hamnet: A Vida Antes de Hamlet” revisita uma das dores mais profundas e menos contadas da história literária: a tragédia pessoal que teria moldado o imaginário de William Shakespeare. No centro da narrativa está a perda do filho de 11 anos, Hamnet, vítima de uma das muitas epidemias que devastaram a Inglaterra no século XVI. Ao lado de sua esposa Agnes, o escritor se vê diante de um luto que transcende o íntimo e se transforma em arte — uma ferida que daria origem à maior de suas tragédias, Hamlet.

Dirigido com sensibilidade e rigor histórico, o filme não se limita a recontar um episódio biográfico. Ele mergulha na intimidade do lar de Shakespeare, nas pequenas rotinas, silêncios e afetos que se entrelaçam com a perda. Entre cenas de uma Inglaterra rural ainda presa a tradições e superstições, o longa constrói um retrato pungente sobre o amor, a mortalidade e a tentativa de encontrar sentido no meio da devastação.

Mais do que uma história sobre o nascimento de uma obra-prima, “Hamnet” é uma reflexão sobre o poder transformador da dor e da memória — e sobre como a arte pode nascer do sofrimento, preservando para sempre aquilo que o tempo e a morte insistem em apagar.

É ao retratar esses pequenos detalhes daquele contexto onde nasceu a obra que Chloé Zhao mostra sua potência. O campo inglês do século XVII tem textura, cores exatas, e não é exagero dizer “cheiros”. O ritmo pode ser considerado lento por alguns, mas quem conhece trabalhos anteriores da diretora sabe que este é o ritmo escolhido para contar sua história, como uma aluna aplicada de Terrence Malick. Os enquadramentos arrojados e a fotografia renascentista de Lukasz Zal (“Ida”, “Guerra Fria”, “Zona de Interesse”) enchem os olhos. A cineasta faz de cada quadro sua aquarela.

“Hamnet” começa com uma imagem de rara delicadeza: Agnes encolhida ao pé de uma árvore, em posição fetal, como se buscasse abrigo entre as raízes do que parece ser a Árvore da Vida. A cena, capturada com uma sensibilidade quase espiritual pelo diretor de fotografia, anuncia desde os primeiros minutos que este não é um filme comum. Tudo em no filme respira simbolismo — desde o enquadramento que transforma o corpo em parte da natureza até os pequenos gestos que revelam o peso invisível do luto.

Cada elemento em cena parece carregar camadas de significado, algumas evidentes, outras sussurradas à percepção do espectador. A terra que acolhe Agnes é, ao mesmo tempo, túmulo e refúgio; as raízes que a envolvem são braços maternos e correntes emocionais. Essa ambiguidade permeia toda a narrativa, que alterna entre o real e o metafórico para explorar a dor, a memória e o ciclo da vida e da morte.

Desde o início, o filme estabelece um diálogo entre o físico e o espiritual, entre a imagem e o invisível — um convite para que o público não apenas veja, mas sinta. É uma introdução que traduz com perfeição o tom de “Hamnet”: uma obra em que o simbolismo se mistura à carne, e onde o sofrimento humano encontra sua forma mais pura na linguagem da poesia visual.

A cineasta fez questão de contar a história sob a perspectiva feminina, inclusive propondo questionamento sobre o temor que o poder feminino causa, e o paralelismo com as ameaças da natureza é constantemente utilizado como figura de linguagem.

Apesar de ter William Shakespeare como centro da trama, o foco está em Agnes, sua esposa. A atriz Jessie Buckley interpreta a protagonista de maneira visceral e devastadora. Ela faz um hercúleo trabalho carregando nos ombros todo o peso dramático pretendido. Curioso que Embora o nome da esposa de Shakespeare geralmente seja escrito como Anne Hathaway, em documentos legais o pai dela escrevia Agnes. No período da primeira modernidade, era comum que os nomes tivessem variações de grafia. Acabu sendo escolhido o nome Agnes para representá-la. Ao seu lado está Paul Mescal, repetindo a parceria de “A Filha Perdida” (2021). O ator está no tom correto, oferecendo um eficiente suporte à atriz, transmitindo adequadamente a cumplicidade do casal e a consternação após a tragédia.

Não é exagero dizer que “Hamnet: A Vida Antes de Hamlet” é o trabalho mais ambicioso de Chloé Zhao. O roteiro assinado por ela e Maggie O’Farrell ganha progressão típica de uma peça shakespeariana, onde o ápice de fato é o terceiro ato, com um final tão grandioso quanto comovente. A realização impecável no todo minimiza alguns deslizes cometidos no andamento e alguns pontos de desenvolvimento da trama. No todo é uma obra artesanal com capricho indiscutível.

Hamnet: A Vida Antes de Hamlet

Hamnet: A Vida Antes de Hamlet
8 10 0 1
Nota: 8/10 – Excelente
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