Ganhador do prêmio de Melhor Roteiro no Festival de Cannes de 2022, Garoto dos Céus é uma salada mista de nações com ares de thriller político-religioso. Produzido por suecos – sendo inclusive o filme submetido pela Suécia e pré-selecionado para o Oscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira – mas ambientado no Egito, Garoto dos Céus é emocionante, instigante e vai deixar você com o coração na mão.
Adam (Tawfeek Barhom) recebe boas notícias: ele ganhou uma bolsa de estudos para frequentar Al-Azhar, uma prestigiada instituição de ensino no Cairo. Para isso, ele deixa para trás o pai, pescador, e seus dois irmãos que ajudam no barco de pesca, como Adam também ajudava. Essa mudança acontece concomitante à morte do Grande Imã, líder religioso islâmico sunita, e à eleição de um novo Imã para ficar no lugar dele. Adam se vê envolvido nessa eleição quando é arbitrariamente escolhido como novo “anjo”, um informante dentro de Al-Azhar.
Quem faz o contato com Adam é o general Ibrahim (Fares Fares), um homem do governo determinado a alçar ao posto de Grande Imã o candidato dos poderosos, não o preferido pelo público, que é um sheik cego. Para isso, ele prende o sheik cego – provando que prisão política para não ganhar eleição é mais comum do que imaginamos – e pede que Adam se infiltre em um grupo de estudos dos alunos da Al-Azhar, para ficar de olho em alguns elementos.
Uma cartela de texto com explicações sobre Al-Azhar e o poder do Grande Imã são suficientes para introduzir o assunto e nos ambientar logo no começo do filme. Nada é muito mastigado durante a projeção, mas é possível acompanhar o jogo de influências com tranquilidade, mesmo para nós que pouco sabemos sobre as questões islâmicas. Em tempos em que a fronteira entre o político e o religioso está borrada e prestes a se dissolver, é de suma importância pensarmos, ainda que seja através de filmes, sobre intrigas político-religiosas como a mostrada em Garoto dos Céus.
O roteirista e diretor Tarik Saleh, ele próprio sueco de nascimento, revelou que a inspiração para Garoto dos Céus veio quando estava relendo o romance “O Nome da Rosa”, de Umberto Eco, e se perguntou como seria se uma situação semelhante acontecesse num contexto muçulmano. Confessando que a ideia era algo como “brincar com fogo”, Saleh não parou mais de pensar na hipótese e teve de colocar a ideia no mundo. Sobre o filme e sua recusa de se ater a gêneros, Saleh declara: “Estou interessado em cinema de gênero, aquele que estabelece um contrato entre o diretor e seu público. Se eu digo que “Garoto dos Céus” é um suspense, o público terá certas expectativas. Mas eu gosto de subverter também essas expectativas, destruir os clichês do gênero trazendo a realidade à tona, o que me faz perder o controle da história, e isso que me agrada.”
Garoto dos Céus é um daqueles filmes que mostram que, a milhares de quilômetros de distância e em outra cultura completamente diferente, existem situações parecidas com as nossas. A condição humana é mais familiar do que em geral damos conta e o poder é, como dito no filme, realmente uma faca de dois gumes: você pode se cortar enquanto o segura. E nada melhor que o cinema – o bom cinema – para explorar a condição humana em diferentes contextos.