O texto que vocês estão prestes a ler contém spoilers, muitos spoilers e vai debater sobre diversos aspectos do filme “Gravidade” e de seu roteiro, inclusive a cena final. Portanto, se você não quer saber o que acontece no filme, não leia este texto antes de assistir e não fique aí parado me olhando com cara de bobo e vá logo para o cinema conferir essa obra de arte, especialmente se você tiver uma sala com projetor digital.
Agora que você já assistiu ao filme e está tentando remoer todas as ideias dispostas nele, resolvi colocar um pouco mais de minhocas na sua cabeça, a começar pelos efeitos especiais e fidelidade com a realidade.
Alguns que estão lendo este texto podem ter visto que o astrônomo Neil deGrasse Tyson, um dos mais respeitados e conhecidos do planeta, fez algumas críticas bem humoradas aos efeitos do filme e algumas liberdades poéticas do roteiro para dar viabilidade a toda trama. Ainda assim, a partir do momento em que é preciso um gênio da astrofísica para achar defeito em um filme de ficção científica, podemos dizer que o mesmo realmente é bem sucedido neste aspecto. Entretanto, a qualidade dos efeitos especiais e sua veracidade não fazem um bom filme, e é aí que entra a filosofia kubrickiana adotada por Cuarón.
Para aqueles que não assistiram “2001 – Uma Odisseia no Espaço”, Stanley Kubrick invoca a temática da evolução da humanidade, desde seus primórdios com primatas encontrando um obelisco que mais para frente, é encontrado na Lua e após, em Júpiter e além. O obelisco de Kubrick marca os saltos evolutivos do filme. Cuarón age de forma parecida, mas de forma inversa, invocando o universo para dentro da personagem de Sandra Bullock.
No começo do filme, vemos a Dra. Ryan Stone (Bullock) tentando instalar um novo hardware no telescópio espacial Hubble e ela tem alguns problemas de comunicação entre o telescópio e a Terra. A sua volta, outro astronauta, Matt Kowalski (George Clooney) está testando uma nova mochila de vôo para ter liberdade no espaço, livre dos cordões umbilicais que ligam os astronautas as suas respectivas naves. Sim, eu sei, estamos com menos de 5 minutos de filme e já fui além da imaginação, continuem aí que vai piorar.
Somos então avisados, juntamente dos astronautas, que os russos explodiram um de seus satélites e que uma nuvem de destroços está criando uma onda de destruição que irá cortar as comunicações entre Terra e os astronautas e em verdade, ferrar com toda a comunicação no planeta. Aqui começa a involução que o filme nos mostra. Vemos a beleza tecnológica do ônibus espacial e do Hubble sendo atacados por uma chuva de destroços e a única saída para os dois sobreviventes do incidente é fugir para a Estação Espacial Internacional ou morrer no espaço. Stone é salva por Kowalski que se torna um herói ao sacrificar a própria vida para salvar sua companheira ao deixar que a mesma se mantivesse presa por seu cordão, no caso, as amarras de um paraquedas, que poderiam apenas salvar uma pessoa. Ainda assim, a comunicação dos dois permanece intacta, isolados de seu mundo, unidos agora apenas por suas vozes. Kowalski, o homem liberto das amarras, um Ícaro moderno, queimando seu combustível restante para salvar a mulher, aquela que já sentiu o peso da perda de uma criança, mas que poderia voltar a gerar vida novamente.
Aqui o filme entra em uma espécie de ciclo de destruição e criação. Dentro da estação espacial, Stone se livra de seu traje de alta tecnologia e fica em posição fetal, flutuando livremente como se colocada em um útero artificial, pronta para renascer. Mas aqui vemos que seu renascimento primeiro tem de ser batizado a ferro e fogo. A estação se incendeia e ela tem de fugir para uma estação menor, menos tecnológica, usando uma cápsula russa, seu segundo passo a involução, de astronauta a cosmonauta, uma pioneira do espaço, usando um traje russo com o número 42 gravado em si, uma breve homenagem ao Guia dos Mochileiros da Galáxia e a resposta para as questões fundamentais do universo e tudo mais.
Chegando na estação chinesa, a nuvem de destroços está para chegar nela e a sua única saída é um modulo de fuga, em uma língua totalmente desconhecida, em uma nave que tem seu nome traduzido como Palácio Celestial que logo vira uma bola de fogo e se despedaça, carregando consigo nossa pequena Stone, em suas pequenas labaredas que muito lembram espermatozoides correndo para o óvulo gigantesco que é nosso planeta. A nave cai perto de onde ela morava antes de ir para o espaço, em uma espécie de demonstração do ciclo de destruição e reconstrução que todos e tudo sofrem. Ela cai dentro de um lago e tem de se livrar de todas as amarras, desta vez, do traje espacial pesado, que a está carregando para a morte, voltando plenamente ao estado natural do ser, ou quase, afinal, ela ficou com as roupas debaixo.
Stone sai da água, acompanhada de um sapo, um anfíbio, seguindo do meio líquido para o sólido, se arrastando para então, voltar a se erguer ser humana novamente, terminando sua involução e tendo a possibilidade de voltar a evoluir.
A temática aqui é clara, é a ideia de se recriar, de se tornar novamente uma pessoa a partir da destruição e dos percalços que são explorados a fundo. Mesmo em um momento em que a única saída parecia a morte e, quem sabe, o renascimento (em dado momento do filme, vemos uma estátua de Buda dentro de uma das naves), entretanto, no último instante, antes do sono definitivo, ela é salva por o que alguns poderiam chamar de um chamado espiritual, um momento final de consciência para sobreviver desencadeado pela hipoxia, um milagre, cada um interpreta da sua forma.
Em um filme que trata de evolução, ou involução, o chamado espiritual parece ser descabido, porém, não há como saber o que se passa na mente de Stone e se em seus últimos momentos, ela resolveu buscar a saída mais difícil e lutar até o fim, mesmo que inconscientemente.
Não é a toa que “Gravidade” está sendo celebrado como uma nova obra prima da ficção científica, nos moldes de 2001, o gênero que para muitos pode parecer descerebrado e embasado meramente na tecnologia e efeitos especiais, mas, se dirigido e escrito por profissionais competentes, sempre irá gerar grandes histórias e momentos marcantes em todos aqueles que os assistem. Gravidade irá ganhar este status com certeza e por muitos anos teremos autores tentando analisar toda a filosofia e semiótica presentes no filme.
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