Quem se interessa pelo cinema feito no Ceará, conhece Pedro Diógenes.
Inicialmente pertencente ao grupo Alumbramento, ao lado de Guto Parente e os irmãos Ricardo e Luiz Pretti, Diógenes vem se destacando como diretor e roteirista em projetos solo nesses últimos anos. Marcados por uma abordagem afetuosa e lúdica, seus filmes são também permeados pelo interesse na geografia local de Fortaleza, suas manifestações culturais populares e no gesto artístico como forma de sobrevivência.
Mesclando vários desses elementos, Centro Ilusão nasce de sua paixão pela cena musical de sua cidade.
Duas personagens, Tuca e Caio, encarnam alteregos de um mesmo espírito: o músico autoral. São eles que nos guiarão nessa história. Situados em pontos distoantes de suas vidas, o jovem iniciante e o já mais velho e estabelecido artista participam de uma seleção para um Laboratório na esperança de encontrar reconhecimento e estabilidade para suas vidas.
Tuca é vivido por Fernando Catatau, cantor de longa data, conhecido “na vida real” por sua participação na Banda Cidadão Instigado, formada em 1996, e por uma longa carreira de guitarrista e produtor musical. Ele interpreta um artista já desiludido e cansado em busca de renovação e redenção.
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Caio, interpretado por Brunu Kunk, é o jovem no início de sua carreira, cheio de garra e desejo, vivendo os corres do dia a dia pra se sustentar, que vê na seleção a chance de uma alavancada em sua trajetória artística.
Cada um com sua jornada, cada um com suas lutas e bagagens pessoais.
O filme traz um olhar generoso para suas personagens, reconhecendo a beleza e a riqueza na particularidade de seus momentos e estilos. Tuca traz a vivência e a proeza acumuladas no domínio de sua arte. Encarna uma geração de rebeldia, radicalidade e experimentação, de jaquetas de couro e óculos escuros. Caio traz a coragem e a impetuosidade de quem tem em si todos os sonhos do mundo. Usa a espontaneidade de tocar na rua pra conseguir um trocado. Se veste e se porta através de uma grande mistura de signos e cores. De cabelos verdes e unhas pintadas, faz parte de uma geração que não segue mais um protocolo previsível e que encontra na própria indefinição sua identidade.
Logo nos primeiros minutos do filme, durante a apresentação de teste das personagens, percebemos esse contraste. Enquanto Tuca performa com proficiência e exatidão, Caio acaba improvisando uma batucada de mão quando a efervescência de seus gestos leva uma das cordas de seu violão a romper. Essa dualidade dos protagonistas é (muito bem) usada pelo filme como um dispositivo para nos apresentar posturas distintas, mas que acabam sempre se encontrando pela simetria da paixão pela arte.
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Tuca é uma referência pra Caio, alguém em quem ele quer se espelhar. Mas seu ídolo parece indiferente e um pouco indisponível. Mesmo sem querer interagir muito, Caio acaba cativando-o e, enquanto esperam o resultado da seleção, os dois seguem flanando pelo centro comercial de Fortaleza atrás de uma corda nova para o violão. Nesse caminhar, pequenas situações vão colocando nossas protagonistas em ação e desvelando suas características e histórias.
A admiração se torna mútua.
As personagens femininas aparecem como pontos de afeto, acolhimento e inspiração. A amiga e a avó de Caio, a mãe e a ex namorada de Tuca são essas presenças, que apaziguam e dão apoio. Várias delas também preenchidas pela música.
As apresentações musicais aqui não são apenas pano de fundo nem ferramenta de representação pra dar cor aos personagens. Elas são verdadeiras performances, exibidas em sua integralidade. Trazem textura e sensorialidade e acrescentam camadas de sentido a partir de suas letras. São momentos de fruição e de sonho.
Duas das canções foram compostas especialmente para o filme, a primeira e a última, de título homônimo.
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Assim como em outros projetos dessa cinematografia, a cidade é mais do que apenas cenário. Ela é personagem. Espaço demarcado pelo transitar constante de corpos, de lojas e bares e roupas e praças com prédios e sarjetas sujas e pessoas com pressa e com fome. Pela manhã, apinhado de gente, pela noite, vazio e inóspito, os centros das grandes cidades e capitais brasileiras são lugares que carregam a memória de passados de elegância e ostentação. De um tempo em que a aristocracia idealizava pontes e prédios robustos destinados a exibir sua arquitetura. Hoje desbotados, desabitados e abandonados. Mas também democráticos, populares e acessíveis.
Há alguma coisa nessas ruínas que acaba por tensionar a libido criativa dos artistas. Esse desvinculo de seu intuito original abre portas para a potência da reinvenção.
Reinvenção essa que vemos espelhada nas personagens.
A narrativa sugere esse gesto pela união dos tempos e talentos: mesclar experiência e vivacidade, o clássico e o contemporâneo.
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E mais uma vez, vemos o olhar generoso de Diógenes.
O cinema alternativo, muitas vezes na história, foi marcado pela rejeição ao que veio antes, no anseio constante de criar algo inteiramente novo e original. Centro Ilusão, assim como o cinema praticado pelo diretor, propõe uma conciliação entre o anterior e o atual, entre o velho e o novo, entre o narrativo e o experimental agregando o melhor que há em cada um.
Muita coisa mudou nesse mundo do fazer artístico. Das gravadoras e rádios para as plataformas de streaming, as redes sociais e as seleções em editais tornaram-se algumas das principais vias para se tornar conhecido e ganhar seu sustento. Há mais diversidade nos corpos e vozes, mas há também um inflacionamento e uma dificuldade de escoar e distribuir esses talentos.
Vencedor do Prêmio do Troféu Redentor de Melhor Longa-Metragem no Festival do Rio 2024, Centro Ilusão lida com essa dualidade entre realidade e sonho por um viés do tangível, nos apresentando a costura da vida com a arte como um modo de resistência em meio ao caos, ao descaso e às durezas do mundo.
Raquel Gandra em cobertura na Mostra Tiradentes.
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