Motel Destino é um ensaio sobre poder e desejo com tintas quentes

Das tintas quentes de Karim Aïnouz saiu “Motel Destino”, que segue exatamente o estilo de narrativa e estética que o cineasta cearense imprimiu com tanta personalidade em longas como “Madame Satã” e “Praia do Futuro”, para citar dois exemplos emblemáticos. Aïnouz costuma trabalhar a psique humana em seu limite do desespero, e dali extrair toda uma poesia idiossincrática que norteia toda a estrutura narrativa.

O filme é todo ambientado em um estabelecimento de beira de estrada no litoral cearense, que leva o nome da trama. Heraldo (Iago Xavier), um jovem de origem humilde que chega ao Motel Destino, administrado por Elias (Fábio Assunção) e sua esposa Dayana (Nataly Rocha), e acaba transformando a vida do casal. Heraldo é membro foragido de uma gangue, e desperta curiosidade e em seguida desejo em Dayana o que culmina em um plano ousado de liberdade.

A intenção do cineasta, que tem como marca registrada a afeição pelas crônicas da realidade brasileira, é justamente abordar como os sonhos de uma juventude nordestina foram sufocados por uma elite opressora e sem consciência. Em um contexto e, que o oprimido se vê prejudicado e sem nenhum recurso, a insurreição é a única saída possível.

A opressão sobre a qual o cineasta quer dissertar é transmitida pela precisa fotografia de Hélène Louvart dando-nos uma sensação quase claustrofóbica, mesmo nas cenas ao ar livre, e o uso da película para filmar é primordial para obter esse resultado. O motel não só possui uma função de personagem narrador onisciente, como se mostra como um organismo vivo, em suas luzes pulsantes, deficiências, sempre se expressando através dos gemidos dos hóspedes que aparecem como uma constante trilha de fundo.

Na lente de Aïnouz o naturalismo grassa. A paisagem é mostrada sem filtros assim como os animais (inclusive há uma cena em que é mostrado um casal de jegues que pode causar certo mal-estar em alguns) e os próprios protagonistas.

Nataly Rocha defende seu papel com verdade e totalmente em conformidade com esse naturalismo proposto pelo diretor. Ela domina cada quadro que protagoniza e consegue, apenas no olhar, explicitar a força e ao mesmo tempo o conflito entre dever e desejo que torna Dayana vulnerável. Iago Xavier, em sua estreia em longas-metragens para o cinema, cumpre de forma satisfatória a função de Heraldo como elemento catalisador de conflito. Já Fábio Assunção consolida sua volta por cima após o período de luta contra a dependência química interpretando com maestria o papel de cidadão obtuso, tosco, personificando a extrema direita. Várias de suas frases são repetições de alguns absurdos que o ex-presidente Jair Bolsonaro proferiu. E paradoxalmente ele consegue gerar uma certa empatia no espectador, já que pode ser interpretado como uma vítima moldada pelo sistema que o trucidaria caso não se tornasse um opressor.

“Motel Destino” é um filme cheio de camadas, com personagens cheios de nuances e seu trunfo é justamente dar ao espectador a oportunidade de observar cada uma delas. O surrealismo baseado no realismo bruto é outra característica da obra de Aïnouz tão bem demarcada nesse novo trabalho. Um belo ensaio sobre a dinâmica de poder e desejo em um cenário opressor do Brasil que ainda busca entender a sua essência moral.

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