“Gregário”, segundo o Dicionário Priberam, significa “diz-se dos animais que vivem em bandos, das plantas que crescem em grande número no mesmo lugar”. O ser humano é gregário, pois vive em sociedade, na civilização nem sempre civilizada. Precisamos de outros humanos para conviver, para trocas diversas – inclusive de afeto –, mas essa convivência nem sempre é harmoniosa. É da desarmonia que a protagonista do sensível filme O Acidente ganha um novo conviva, e deste encontro tenta reequibrar sua vida.
Joana (Carol Martins), ou Jo, foi atropelada. Não foi um atropelamento qualquer: após ser ultrapassada andando de bicicleta, Jo foi tirar satisfação com a motorista do carro que a cortou, ficando em frente ao veículo. O sinal abriu e o carro avançou, pegando Jo e levando-a, em cima do capô, por muitos metros, até frear o carro. Deixada caída na rua pela motorista que fugiu, Jo dependeu da bondade de estranhos para, literalmente, se reerguer.
Jo é tradutora – ela estava a caminho de um evento no qual faria tradução simultânea quando foi atropelada – e mora em Porto Alegre com a companheira Cecília (Carina Sehn) e a cachorra Cacau. Um agravante: Joana está grávida, e isso precisa ser levado em conta quando ela, incentivada por Cecília, faz a denúncia do atropelamento. Por ter uma foto da placa do carro, elas chegam até o proprietário do veículo: um homem chamado Cléber. E é Cléber que as procura, com o objetivo de fazer Joana testemunhar a seu favor numa audiência que decidirá se Maicon (Luis Felipe Xavier), adolescente que filmou o atropelamento, ficará com o pai Cléber (Marcello Crawshaw) ou com a mãe atropeladora, Elaine (Gabriela Greco).
Prestes a formar sua própria família, Jo se vê, sem querer, mergulhada no cotidiano de uma outra família. De repente ela está em um churrasco com eles, ou enfrentando um assalto ao lado de Maicon. O objetivo inicial desta aproximação era ver se Maicon ficava melhor com o pai ou com a mãe, para então Joana decidir se ela irá à audiência, mas a relação entre a protagonista e o menino vai se estreitando, enchendo-se de confidências e carinho.
Além de atropelar e fugir, Elaine é também invasora de domicílios e homofóbica. Ela teme, e conta para Jo, que Maicon seja como a moça, isto é, homossexual. Não é nenhum problema a orientação sexual de Jo, o que é um ponto positivo no filme, e mostra que histórias LGBTQIA+ podem ser contadas de diversas formas, e inclusive a orientação sexual de um personagem ser só mais um detalhe numa história maior, como é o caso aqui.
A inspiração para o filme veio quando o diretor e roteirista Bruno Carboni viu um vídeo de um acidente igual ao que Joana sofre no começo da película. Ele comenta:
“Talvez aquele vídeo fosse menos chocante do que se vê nos noticiários, entretanto, aquele pequeno incidente me parecia representar um certo sentimento de inimizade no ar, fruto da polarização política que dividia a sociedade brasileira e impossibilitava qualquer tentativa de diálogo”
O filme foi rodado em 2019 e apresenta, com a polarização das duas famílias ecoando os anos bolsonaristas – presente também no fato de Cléber querer colocar Maicon, um garoto sensível dado às artes, numa escola militar – um retrato emocionante sobre o que é ser humano e querer apoio e afeto. Este é O Acidente: um filme de afetos, que vem colhendo frutos por sua sensibilidade em diversos festivais.
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