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O Diretor-Fantasma

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Resenha crítica de O Escritor-Fantasma, de Roman Polanski.

Deste filme, como de alguns vinhos, se pode dizer que é um autêntico Polanski. E como todo Polanski, este é um dueto, um 2 em 1: você compra um filme e assiste a outro.

Roman Polanski é um mestre do pastiche. O pastiche é uma técnica estética precisa: está para a paródia assim como o cinismo está para a ironia. A paródia é uma cópia irônica de um estilo consagrado que mantém pelo humor a distância entre o original e sua versão. Já o pastiche é uma cópia que se pretende com mais estilo do que a própria fonte original. Como diretor consagrado ele oscilou entre estas duas formas cinematográficas. Seu filme A Dança dos Vampiros é uma paródia que criou toda uma geração de filmes que misturam o suspense vampiresco com humor, o famoso estilo “terrir”. Já Repulsa ao Sexo é um pastiche bergmanniano: um filme de Bergmann que o próprio diretor sueco jamais teria feito. Entre os dois está o Bebê de Rosemary, filme tão assustadoramente real que a própria realidade se ocupou de copiá-lo…

Seu maior clássico é Chinatown, filme noir fora de época que, de tão perfeito, se tornou o próprio modelo de filme noir. Para Polanski, o domínio do pastiche é o domínio da própria linguagem cinematográfica enquanto linguagem específica: é o cinema falando cinema, o cinema enquanto forma e conteúdo.

O Escritor-Fantasma é um thriller político hitchcockiano no melhor estilo do grande mestre do cinema. Uma confusa trama, como há de ser, envolvendo um escritor, vivido por Ewan McGregor (afinal atuando com cara de homem e não como a de um pós-adolescente), contratado para substituir um ghost writer de um ex-primeiro ministro inglês. O ghost-writer, que escrevia as memórias do político, é encontrado morto e dado como suicida. Já o ex-primeiro ministro, vivido pelo jamesbondiano Pierce Brosnan, lembra Tony Blair e é acusado de entregar terroristas islâmicos à CIA.

Polanski assumidamente quer realizar um filme tal como Hitchcock teria feito nos dias de hoje. Estão aí presentes os geniais artifícios que tornaram célebre o autor de Intriga Internacional: o personagem que substitui um outro, a trama enrolada, os diálogos britanicamente sofisticados, os lugares ermos e sinistros onde alguma coisa pode acontecer a qualquer momento, mas não ocorre.

Há duas sequências que são puro Hitchcock: a da perseguição de carro ao protagonista ao sair da casa do intelectual agente da CIA, e a cena, ao final, quando um bilhete passa de mão em mão até chegar ao seu destinatário: são nelas que o diretor franco-polonês melhor mimetiza seu prógono inglês. E mesmo o nome do ghost-writer suicida, McNara é totalmente hitchcockiano.

E há também o uso intensivo do MacGuffin: o argumento central em torno do qual gira toda a trama e movimenta a peripécia, mas que no fundo não tem a menor importância. Neste filme, o que interessa, não é o complicado enredo de maquinações da espionagem política. Nem tampouco as razões que levaram à morte do primeiro ghost-writer que já advinhamos desde o início ter sido “suicidado”. E terminamos o filme mal sabendo o nome do protagonista, que afinal não tinha nome mesmo.

É antes o exercício de estilo de Polanski e sua imensa capacidade de tornar sua a linguagem dos outros, de estar à vontade exercendo uma gramática hitchcockiana de suspense, com mão de mestre, o que realmente importa. Porém, não é um exercício estilístico vão. Aqui a forma se duplica para gerar ao menos dois filmes: ao thriller político se sobrepõe a trama contemporânea geopolítica. Polanski, condenado nos EUA por fazer sexo com uma adolescente, faz uma encenação extremamente atual dos bastidores sombrios da “Guerra ao Terror” que norteou os últimos anos da era Bush e cujo ápice da invasão ao Iraque contou com decisivos apoio e participação dos cúmplices britânicos.

Paródia ou pastiche da realidade? A presença de Pierce Brosman como o jovial ex-Primeiro Ministro é sugestivamente farsesca: afinal Brosman é o último dos agentes 007, a serviço de sua Majestade. Ele vem reforçar a pergunta que paira sobre o filme: teria o apoio britânico à invasão do Iraque sido coordenado pela própria CIA? É o que sugere Polanski, e esta hipótese está longe de ser inverossímil…

É assim que o banido e condenado Polanski critica o moralismo politicamente correto e hipócrita que justifica ideologicamente a narrativa da “Guerra ao Terror”. Impossibilitado de pisar em solo americano, o diretor filma as cenas nos EUA em sítios na própria Europa, com a presença de bandeirinhas americanas. Não é uma forma de dizer que não apenas houve uma invasão no Iraque, mas que a própria Europa foi ocupada pela mentalidade beligerante do bushismo (em vários países europeus ocorreram denúncias de suspeitos islâmicos entregues à CIA)?

A última das ironias será que Polanski acabará preso na “independente” Suíça antes de concluir o filme. O filme teve de ser terminado por seus colaboradores. Assim, como no sinistro Bebê de Rosemary, a realidade acaba por se tornar um pastiche da própria arte: mais do que um Escritor-Fantasma, trata-se de um filme realizado por um Diretor-Fantasma.

E por isso, é preciso reconhecer que o título em português do filme, o Escritor-Fantasma, acertou desta vez em cheio. Traduzindo literalmente The Ghost-Writer, criou-se uma significação ambígua que preserva, num sutil deslocamento semântico, a própria ideia do filme, uma farsa que faz do thriller à la Hitchcock apenas um pretexto. O velho autor de Cortina Rasgada certamente admiraria mais este típico exemplo de humor britânico.

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4 Comentários

  • mandou bem, guilherme! sabe o que eu também achei super hitchcock? a cena da cabana no meio do nada de onde sai o velhinho que revela um elemento fundamental para a intriga. super hitchcock. e aquela praia deserta com aquele farol ao fundo então? o filme é bom pra caralho!

  • Eu quero ver o filme só pra ver como ficou a adaptação do livro do Robert Harris. Pelo o que tu disse na resenha, parece que ele manteve o ar desconhecido que o escritor tem no livro, sendo realmente um fantasma, sem revelar seu próprio nome.

    Vale lembrar também que Robert Harris trabalhou no governo britânico e foi um grande crítico do governo de Tony Blair e contra as invasões ao iraque.

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