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O Sequestro do Papa: uma indignante história real

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ESTA CRÍTICA TEM SPOILERS

De boas intenções o inferno está cheio, diz um velho ditado. Quantos atos sórdidos, aparentemente benevolentes em sua gênese, já foram cometidos em nome de Jesus? Muitos, com certeza. Desde a Idade Média, com o aumento do poderio da Igreja Católica, atos grotescos praticados em nome da fé se multiplicaram. Como foram muitos, basta destacar um para que surja indignação. É esse sentimento que predomina enquanto assistimos a “O Sequestro do Papa”, novo filme de Marco Bellocchio.

Os Mortara, uma numerosa família de judeus, vivem em Bolonha na década de 1850. Um dia, sem o consentimento dos pais, um dos nove filhos do casal, Edgardo (Enea Sala), é batizado pela empregada. Quando o menino tem seis anos, o padre Feletti (Fabrizio Gifuni) fica sabendo do caso e manda tirarem o menino da família. Edgardo é levado de Bolonha para Roma, para uma escola de catecúmenos onde vivem e estudam meninos iguais a ele – judeus batizados ilegalmente e retirados à força de suas famílias. A escola funciona junto aos escritórios do Papa Pio IX (Paolo Pierobon).

Em 1859, o Papa começa a sentir a pressão feita pelo movimento de Unificação Italiana. O padre Feletti é levado a julgamento, e os exércitos a cada ano se aproximam mais dos muros da residência papal em Roma. É neste clima de incertezas, em que a única reação possível é rezar, que Edgardo cresce, com sua família longe nunca se esquecendo dele e planejando uma maneira de trazê-lo de volta ao convívio deles.

Uma sequência de montagem paralela nos mostra celebrações judias e católicas lado a lado, numa comparação pertinente. Durante o rito, a mãe de Edgardo, Marianna (Barbara Ronchi), vê o filho junto aos irmãos, como numa miragem. Outra sequência estilisticamente interessante envolve um sonho de Edgardo: o menino sonha com ele mesmo andando pela igreja e retirando os pregos de Jesus na cruz, deixando o Redentor livre para sair dali.

É bem retratado como uma religião pode fazer uma lavagem cerebral numa pessoa, em especial se começar o processo ainda na infância. Quando Simone, um dos meninos da escola, morre do coração, Edgardo pergunta ao amigo Elia se ele morreu porque os outros meninos “não rezaram o suficiente”. Depois de anos na escola, ao reencontrar seu irmão mais velho, Edgardo diz que não pertence mais ao mundo da família judia da qual provém. E, absurdo dos absurdos, depois de muito tempo sem ver a família, Edgardo aparece quando a mãe está no leito de morte com o intuito de batizá-la para “salvar sua alma” – e ela tem forças ainda para declarar que “nasci judia e vou morrer judia”.

Guardadas as devidas proporções, o jovem intérprete de Edgardo me lembrou de Jackie Coogan. Há mais de um século, em 1921, Coogan foi revelado ao mundo no filme “O Garoto”, de Charles Chaplin. Seguiram-se anos de sucesso até a puberdade, mas o pequeno Coogan não viu um centavo da fortuna que ganhou fazendo filmes: seus pais, seu padrasto e agente em especial, gastaram todo o dinheiro. Ele ganhou, já adulto, uma segunda chance quando foi escalado para viver o Tio Chico na versão para TV da Família Addams nos anos 60. Estava irreconhecível. Esperamos que o drama de Coogan não se repita com o pequeno Enea.

Você sabia que “O Sequestro do Papa” quase foi filmado por Steven Spielberg? Em 2016, o diretor estava pensando seriamente no projeto: Mark Rylance, recém-oscarizado, seria o Papa Pio IX e Oscar Isaac seria Edgardo na idade adulta. A busca por um garoto para interpretar Edgardo na infância teve início, mas ao se revelar infrutífera acabou parando o projeto, que foi retomado seis anos depois pelo italiano Marco Bellocchio, um celebrado veterano da sétima arte.

O filme foi indicado a onze prêmios do Davi di Donatello, Oscar do cinema italiano, e venceu nas categorias Melhor Figurino, Cabelo e Maquiagem. As inspirações visuais da película vêm do período do Pré-Impressionismo, no qual se destaca o pintor francês Eugène Delacroix, e suas muitas cenas de vidas familiares e religiosas. Quanto ao contexto e veracidade dos fatos narrados, Bellocchio enfrentou um desafio:

Sabemos muito pouco sobre a vida privada dos personagens, por exemplo. A estrutura do filme é sustentada por vários pilares históricos: o sequestro em 1858, o julgamento em 1860 e a captura de Roma em 1870. […] Minha empatia vai claramente para a criança que sofreu um ato de extrema violência”.

Um dos muitos religiosos no filme diz que a Igreja sabe quando ser uma mãe benevolente. Se sabe ser mãe, sabe também ser madrasta má, como as das histórias de contos de fada. Muitas vezes a Igreja Católica se esquece de suas origens, de religião perseguida e praticada nas catacumbas do Império Romano, e se torna ela mesma uma opressora. Casos como o de Edgardo Mortara dificilmente se repetiriam hoje, o próprio Marco Bellocchio admite, mas é preciso fazer essa denúncia. E que bom que ela foi feita com tanta eloquência.

NOTA 9 de 10

O Sequestro do Papa (2023)

O Sequestro do Papa (2023)
9 10 0 1
Nota: 9/10: Fantástico
Nota: 9/10: Fantástico
9/10
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