Num mundo cada vez mais hedonista, não é de se espantar que procuremos “comfort movies” toda vez que abrimos nosso serviço de streaming favorito ou vamos ao cinema. “Comfort movies” são aqueles filmes que nos deixam com um quentinho no coração ao final da sessão, podendo ser filmes novos – em geral bem previsíveis – ou velhos favoritos que já vimos dezenas de vezes. Não há nada de errado com os “comfort movies”, mas o cinema pode mais. O cinema pode – e deve! – provocar o espectador, suscitar debates e reflexões após o fim da sessão. É isso que faz o novo filme nacional “Propriedade”, que já foi muito comentado no circuito de festivais e agora chega aos cinemas.
Logo de cara, ficamos sabendo, sutilmente na conversa, que Teresa (Malu Galli) sofreu algum tipo de trauma recentemente. Seu marido Roberto (Tavinho Teixeira) acaba de comprar um carro novo, que mandou blindar por causa da experiência ruim recente da esposa. Coisa rara acontece: eles saem de seu apartamento de alto padrão em Recife e vão até a Fazenda Cavalcanti, fazenda da família.
É hora do flashback! Nele vemos o que aconteceu naquele mesmo dia, mais cedo, na fazenda. Todos os trabalhadores reunidos, e o capataz informa que a fazenda foi vendida para ser convertida em um hotel. Os trabalhadores estão dispensados, precisam apenas pagar dívidas numa vendinha local para obterem seus documentos de volta e seguirem com a vida. Indignados com a demissão em massa e a ingratidão depois de tantos anos de verdadeira servidão, os trabalhadores partem para a violência.
E é com pouco mais de trinta minutos de projeção que as duas histórias convergem. Um dos trabalhadores ataca Roberto dentro da casa da fazenda, mas deixa Teresa escapar. Ela corre até o carro, mas é incapaz de ligá-lo – o veículo só responde a um comando de voz. Como o carro é blindado, tiros e um pé-de-cabra não são suficientes para abri-lo, e assim Teresa fica presa, revivendo o trauma de tempos atrás, quando ela foi feita refém durante um assalto.
Propriedade foi rodado no final de 2018 e durante seu processo de pós-produção acabou ficando mais relevante. Num país profundamente polarizado, como acontece entre as classes sociais no filme, o diálogo é praticamente impossível, embora seja a única saída. Assim, a película pode ser uma síntese dos últimos anos, tão conturbados.
Os trabalhadores rurais da fazenda vivem sob um contrato – talvez até só de boca, sem papel passado – semelhante aos dos imigrantes europeus que chegaram ao Brasil no século XIX para trabalhar na lavoura, notadamente no cultivo do café. Eles dependiam de seus patrões e, ao contraírem dívidas que só aumentavam em lojinhas localizadas na propriedade do fazendeiro, acabavam submetidos a uma servidão eterna. Em bom português: outro tipo de escravidão.
Hoje, ainda há muitas pessoas vivendo como no filme, em escravidão por conta de dívidas. E os números de trabalho escravo em zonas rurais só vêm aumentando, de acordo com os resgates de trabalhadores nestas condições feitos anualmente. Muitos trabalhadores acreditam que não têm os mesmos direitos que os trabalhadores urbanos, como à carteira assinada, por isso aceitam se submeter aos trabalhos forçados e contrair dívidas junto aos patrões. O fato de que notícias sobre estas práticas sejam veiculadas em jornais ajuda a conscientizar para libertar mais e mais trabalhadores. O cinema, com Propriedade, está aí para ajudar nesta denúncia.
Propriedade é um filme brutal e desesperador, não importa qual partido o espectador tome. Se nos colocamos no lugar de Teresa, experimentamos o desespero de estar presa num carro cercada por um bando hostil. Se ficamos do lado dos trabalhadores, sentimos como é trabalhar a vida inteira e não ter direitos, o que é injusto. Por mais que o lado dos trabalhadores tenha mais argumentos para ser apoiado, é preciso manter um bocado de humanidade e ver Teresa também como vítima dos oprimidos que viraram opressores.
O diretor e roteirista Daniel Bandeira é muito hábil na construção do suspense no filme, isso não podemos negar: é dos melhores do gênero que o Brasil produziu nos últimos anos. Sua mensagem é mais nebulosa, e talvez nem haja uma mensagem. Ou talvez haja sim, modificando o velho ditado: olho por olho e o mundo acabará cego.
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