Ao conceber seu novo filme, o documentário “Retratos Fantasmas”, o diretor Kleber Mendonça Filho, que nos brindou com obras primorosas como “O Som ao Redor”, “Aquarius” e “Bacurau”, teve a intenção de mostrar ao público o contexto que o formou. É o mote para que sua câmera percorra as ruas do centro de Recife onde se concentravam salas de cinema que eram verdadeiros templos formadores não somente de cinefilia, mas de caráter, e que foi aos poucos se apagando, com a fuga do dinheiro da região central.
O longa conta essa história pessoal do cineasta a partir do circuito de cinemas da capital pernambucana reunindo imagens de arquivo, fotografias e registros filmados. A partir das salas exibidoras, Kleber explora a história do centro da cidade, que tinha particularmente nos cinemas o catalisador de modas e comportamentos. E o ponto de partida dessa jornada, que trata do desenvolvimento urbano acelerado, é nada menos que a janela da casa do diretor, onde morou por vários anos.
O que chama atenção em “Retratos Fantasmas” é sua estrutura narrativa, que se aproxima muito mais de uma trama de ficção do que de um clássico filme documental. O ritmo imprimido, com a ajuda da inserção de longas anteriores do cineasta de forma bastante coesa, dão a sensação de estarmos assistindo a um roteiro de início, arco de desenvolvimento e desfecho. Além do narrador-personagem, temos personagens como o Seu Alexandre, projecionista do Art Palácio, um dos principais cinemas da região, que se torna rapidamente o herói da história para nós.
Ao longo da projeção, Kleber nos imerge nas entranhas de um ecossistema em apuros, mostrando as cabines de projeção com seus antigos maquinários, quando ainda em funcionamento, como organismos vivos gritando por socorro. Isso contrasta com o glamour de outrora. Já a sensação de cidade fantasma, que justifica o título, é potencializada pelo uso magistral de efeitos sonoros, ou, simplesmente, silêncios que dizem muito.
E um “fantasma” capturado em uma imagem, é o signo que representa o espelhamento do fim dos cinemas, com o esvaziamento da importância econômica da região central da cidade e com o vilipêndio do setor cultural, sobretudo entre 2016 e 2022. Sim, quem tem familiaridade com a obra do diretor sabe que ele em nenhum momento se isenta de abordar a questão política e nem se esquiva de demonstrar qual o seu posicionamento. A presença do cinema da UFA, a produtora estatal de cinema alemã que muito serviu aos nazistas, e as tropas do exército nos anos da Ditadura Militar são claras referências ao momento recente que o país viveu.
Assim como o também documentário “Quando as Luzes das Marquises se Apagam”, que trata do desaparecimento dos cinemas de rua de São Paulo, “Retratos Fantasmas” conta uma história comum a diversas capitais brasileiras, que viram as salas de cinema das regiões do centro fecharem e deteriorarem-se com o domínio dos invencíveis cinemas de shopping. Aquele tinha sim uma estrutura e linguagem documental clássicas. Aqui é possível traçar um paralelo imediato com “Aquarius”, mas “Bacurau”, que também versa sobre resistência, encaixa-se perfeitamente na comparação. A resistência tão necessária à cultura.
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