Um olhar para Manon des sources (1952) de Marcel Pagnol

Encontrar filmes e séries que marcaram a história, em especial fora do mainstream, é um desafio. E como uma homenagem a nomes dos mais diversos da indústria cinematográfica procuramos exemplos. Começaremos com um filme europeu, um francês, Manon des sources de 1952, uma obra de Marces Pagnol (1895–1974), roteiro adaptado de um livro seu, homônimo.

SINOPSE

Nas colinas da Provença, Manon, uma pastora rebelde para vingar a morte de seu pai, bloqueia a fonte de água para os moradores locais. Ela é presa sob acusações absurdas e julgada pelos moradores. Durante este julgamento bizarro, ela é defendida por um professor, um jovem intrigado com a personalidade da protagonista.

Análise e Crítica

Manon des sources et Ugolin é um díptico (na verdade, um único filme, dividido em duas partes) escrito e dirigido por Pagnol para sua esposa Jacqueline Andrée Pagnol (1920-2016). Um presente do amante que conheceu quando tinha seus 23 anos, mas que é também uma obra prima, o grande filme de seu autor. E dez anos depois a reescreve, enriquecendo-a e concluindo-a como L’Eau des Collines que se tornará Jean de Florette (1986), numa outra adaptação para o cinema, por Claude Berri.

Para este filme, Pagnol faz uma viagem mais profunda no interior provençal, se baseando em suas memórias quando criança, sem apelar a autores que já tinha adaptado. Traz um filme sobre a lei do silêncio, sobre aqueles homens que preferem baixar os olhos aos dramas dos outros. Filme sobre o silêncio, mas que paradoxalmente era uma obra de palavras. Palavras que guiam a imagem, a história, palavras que são como esse rio subterrâneo escondido que está no coração da história. Silêncios que matam, palavras que trazem vida.

Manon des sources et Ugolin é talvez o auge de Pagnol no cinema. Lírico, que faz o diretor francês se aproximar do poder das tragédias gregas. Ele capta perfeitamente a atmosfera da Provença, faz-nos sentir a sua aridez, os seus cheiros, a beleza seca das suas paisagens, a partir de uma trilha sonora habilmente composta em torno dos sons da natureza. A música de Raymond Legrand evoca uma presença discreta do homem através de uma partitura inspirada em canções provençais. Há um irrompe musical, quando acompanha o acesso de loucura de Ugolin), mas acima de tudo sentimos a evocação de uma comunidade humana que vive à sombra de uma natureza todo-poderosa.

É a história de uma pequena aldeia da Provença onde a água é a primeira condição de vida. Temos a energia telúrica, imagens mitológicas, coros antigos, usados ​​por Pagnol para desenvolver sua tragédia moderna, uma tragédia que não apresenta heróis, mas homens simples, homens comuns com os quais nos identificamos imediatamente.

A personagem Manon encontra sua origem na figura de Antígona. Como vimos, Pagnol queria escrever um papel para sua esposa Jacqueline, que também viveu numa aldeia como aquela. E assim, o diretor desenvolveu um elo íntimo onde suas memórias e as de sua esposa se cruzam, a vida de uma pequena aldeia e seus habitantes,

Ao longo do filme, Pagnol oscila entre o lirismo e a farsa da aldeia: é a própria ambigüidade desse registro que é, sem dúvida, todo o encanto de Manon des sources. O folclore do sul da França é só um caminho para um contexto, já que a obra de Pagnol não se limitam a uma região, são trabalhos universais e atemporais.

O filme em si

O filme começa com um grupo de moradores conversando no terraço de um café. De uma forma completamente natural, Pagnol apresenta a aldeia, a sua história, a sua atmosfera e as apostas do drama que está por vir.

São oito personagens à volta de uma mesa, em discussões intermináveis, meia hora de filme e toda a genialidade do autor que nos leva com este dispositivo minimalista ao centro da sua história. Entre eles, o Monsieur Belloiseau (Robert Vattier), um excêntrico balconista que usa um equipamento de som bem pesado, supostamente para compensar sua surdez. Vattier (1906–1982) é um alivio cômico na drama e também uma forma bem-humorada de evocar as múltiplas e às vezes catastróficas experiências do cineasta neste campo. E se o filme é um drama pesado, o diretor nunca deixa o espectador no embaraço das lágrimas, sempre contrabalançando os momentos de emoção com a comédia. E escolher um surdo para fazer um discurso é pura genialidade.

Manon des Sources é um filme de personagens. Um filme sem estrela. A história é a estrela – toda a aldeia é a estrela. Não há uma, duas ou três estrelas, mas trinta que são todos os personagens do filme, que entrelaçam os arquétipos encontrados nas aldeias de vários rincões do mundo. Não trataremos de todos os personagens, mas nesse grupo, há todos os arquétipos que conhecemos, desde o caloteiro ao engraçadinho, o resmungão mal-humorado ao tímido.

Ugolin e Manon

Rellys (1905–1991) como Ugolin

Erros, mentiras, traições, culpa, remorso batem ali no íntimo de cada um daqueles personagens. Pagnol tece seu drama em torno dos efeitos de um crime original que vai desencadear por um lado uma vingança implacável, por outro uma culpa cada vez mais insuportável.

Manon e Ugolin são as duas encarnações dessas correntes em torno das quais é construído seu filme. A vítima se torna o carrasco, o criminoso clama por compaixão.

Nesta pequena aldeia que vive no ritmo tranquilo do calor do sul, a culpa individual gradualmente emerge e se acumula. Ressentimento, velhas rixas reaparecem, e logo é a cidade inteira se torna a emanação da culpa coletiva.

A segunda cena do filme revela isso por meio de um julgamento onde Manon, acusada pela aldeia, diverte-se e regressa à sua posição de culpada tirando sarro dos queixosos. Durante esta longa sequência, meia hora de filme, Manon está sentado, como uma estátua, no meio de aldeões gesticulando e acusando uns aos outros, também ridicularizados por suas superstições e sua avareza.

Ugolin não é imediatamente identificado como o segundo personagem do filme, aparece aos poucos, primeiro por meio de palavras e alusões, antes de se materializar na tela. Rellys (1905–1991), um comediante dos palcos, encontra neste personagem trágico um papel magnífico, sem precedentes em sua carreira e compatível com seu talento. Um personagem assustador, trágico e imenso, que não se pode odiar porque é levado pelo amor, mesmo que sua cegueira o leve a fazer escolhas terríveis.

O reflexo do tempo

Pagnol não tinha conseguido encontrar a atmosfera certa naquele período, como tinha feito no pré-guerra. Reuniu sua equipe de atores e técnicos e apostou em Manon des sources com a alegria e o prazer de uma juventude. Pagnol investe muito nessa história, ele se coloca muito nela. São memórias de infância, lugares… Ele é Manon que vive através dela o que sonhava viver quando era criança. Ele dá ao irmão desaparecido de Manon o primeiro nome de seu irmão Paul, cuja morte o marcou profundamente. Paralelamente a esse trabalho muito pessoal (que continuará escrevendo, publicando um livro dez anos depois), Pagnol começou a escrever suas memórias (La Gloire de mon pèree Le Château de ma Mère publicado em 1957).

Originalmente durava cinco (ou mesmo seis) horas; passou para três horas de duração, Manon des sources et Ugolin conta a história da vida de uma aldeia e seus habitantes. Todos são importantes, todos compartilham a vida da aldeia, fazem parte dela, são o passado, o presente e o futuro. Todas as histórias, portanto, acontecem em um grande afresco.

O filme dá a impressão de ter sido rodado em tempo real, a duração das cenas casando com as intervenções dos personagens. Existem momentos de hesitação, passagens anedóticas, que participam plenamente da obra, dão-lhe seu caráter particular, seu realismo, seu fluxo que é o de um pequeno riacho, de um frágil fluxo sinuoso de água.

Manon e Ugolin vêm atrapalhar o ritmo da aldeia, se opor à aparente boa índole dos personagens. Manon rompe as trocas fúteis com intervenções sempre cruas e diretas, perturbando o filme com cada uma de suas aparições. Ela é aquela que evita andar em círculos, aquela que vem colocar os aldeões diante de suas mentiras. Ugolin, ao aparecer, escurece o céu, leva embora e dissemina o remorso que todos tentam abafar sob a tagarelice e o riso.

Desde a Segunda Grande Guerra, Marcel Pagnol estava adormecido, não parecia mais ter o desejo de se reconectar com suas grandes tragédias do pré-guerra. Manon des Sources é, portanto, a prova do talento que foi enterrado muito rapidamente pelo imenso Pagnol. O filme dá continuidade aos temas universais abordados em suas grandes obras pré-guerra e em seus escritos: amor, filiação, família, relação com a terra. Todos esses temas, essas imagens, podem ser encontrados em Manon des Sources, uma obra  poética que é a forma de conclusão de uma obra rica e fascinante. Se os heróis de Marcel Pagnol são pessoas simples, pequenos operários, operários, seus dramas e suas vidas têm a mesma essência dos grandes épicos antigos.

Nota: Excelente – 4 de 5 estrelas

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