O diretor Christopher Nolan (Amnésia, Insônia, Cavaleiro das Trevas) se especializou em filmes que abordam os intrincados domínios da mente. Seus filmes têm sempre intrigantes enredos que exploram os labirínticos desvios de cérebros traumatizados. Por sua vez, complexas tramas são sustentadas pela engenhosa arquitetura cinematográfica que provoca no espectador uma vertigem mental semelhante a que sofrem seus protagonistas. No premiado e reconhecido Amnésia, o protagonista, um corretor de seguros, está impossibilitado de se recordar dos acontecimentos recentes por causa de um violento e criminoso ataque que matou sua mulher e se vê incapaz de dar um sentido de todo a sua vivência. O enredo é construído de tal forma, de trás para frente em vários ciclos de perspectivas parciais, que o próprio espectador também se vê privado dos meios cognitivos que dêem significado à narrativa. Seus filmes são todos contemporâneos e talvez seja Nolan, por excelência, o diretor de uma sociedade “pós-traumática”, como dizem os neurocientistas em sua crítica à psicanálise. Uma sociedade cujos habitantes aprenderam a viver permanentemente em “estado de choque”, absorvendo os traumas em sua plástica “superfície” neuronal, com o custo de anestesiar e alijar sua própria subjetividade que fica então reduzida a um mínimo. Um exemplo típico é a própria série do Cavaleiro das Trevas que Nolan fez retornar (reboot) às “origens”: Batman é um típico sujeito que para assimilar o trauma da perda de seus pais assassinados, precisa se travestir de uma nova personalidade. Assim, na sociedade de choque capitalista, o sujeito traumatizado já não se torna mais um neurótico, como nos velhos tempos do doutor Freud: ele se torna logo outra pessoa. Não é neste caso, o Coringa (The Joker), o perverso adversário de Batman, o exemplo maior? Ao contrário de Batman, o Coringa não tem uma “identidade secreta”. Seu avatar cômico é sua própria personalidade e abaixo de sua fantasia não há nenhum sujeito mais “profundo”.
Em A origem (Inception), seu novo filme, Leonardo DiCaprio faz Mr Cobbs, um “ladrão de sonhos”. Tendo aprendido com seu pai (vivido por Michael Caine) a técnica de penetrar os sonhos das pessoas e a compartilhá-los com seus companheiros, Cobbs e sua gangue são capazes de entrar nas camadas profundas da psique e roubar os segredos mais bem guardados de suas vítimas durante o sono. Batedor de ideias, Cobbs é sempre contratado para furtar segredos industriais ou financeiros dos rivais de seus ricos clientes. Em A Origem, no entanto, sua tarefa não será de roubar segredos, mas de incutir (to incept) uma ideia num jovem rapaz rico que está prestes a herdar do pai um grande império econômico. Ele precisa inserir na mente deste jovem a insidiosa ideia de vender parte deste império para que seu concorrente (vivido por Ken Watanabe) possa ter o monopólio econômico de sua atividade. Para Cobbs/Di Caprio esta será uma tarefa das mais difíceis: as ideias são algo tão pessoal e intransferível que não podem ser “incutidas” na mente de alguém sem passar pela desconfiança erosiva. De modo que para atingir seu objetivo,
Cobbs precisa penetrar o mais fundo possível na mente sonhadora de sua vítima, indo do sonho ao sonho do sonho e daí descendo ainda mais, para o sonho do sonho do sonho, que se desdobram tais como aquelas conhecidas bonequinhas russas.
Sofisticado estelionatário, Cobbs não deixa de ser um bom sujeito e tem seus problemas. Tendo se casado no passado, ele acabou sendo vítima de seu próprio feitiço ao construir junto com sua mulher (vivida pela francesa Marion Cotillard) um mundo ideal de sonhos onde o casal terminará por perder as fronteiras entre a realidade e a fantasia. Obcecado pelo trauma da morte da mulher e cheio de culpas, Cobbs não pode evitar de carregar para dentro dos sonhos compartilhados seus próprios fantasmas atrapalhando as “operações”. Para desatar e superar suas fantasmagorias, Cobbs terá de recriar dentro do sonho as linhas arquitetônicas de seu passado.
A Origem é um filme bastante engenhoso e possui um roteiro complexo, quando não complicado. É interessante como a cada degrau de sonho corresponda outra temporalidade e o filme trabalha bem a “defasagem” entre as camadas oníricas e a “camada” da realidade. No entanto, é surpreendente como num filme sobre sonhos, não haja rigorosamente nenhuma carga de sexualidade ou mesmo de sensualidade. Nolan trabalha com destreza a relação entre sonho e trauma (e lembra justamente que em alemão, sonho é Traum, isto é, trauma) mas deixa de lado o caráter traumático do desejo sexual.
Mas é no principal argumento do filme que está sua questão mais complicada. O filme supõe que incutir uma ideia na cabeça de alguém é muito difícil, pois as ideias seriam intransferíveis. Mas será tão verdade assim? Não é o que faz o funcionamento das ideologias sociais, nos incutindo ideias na cabeça o tempo todo? Não é esta a função do marketing e do merchandising que nos
lançam suas mensagens subliminares? E o suposto “senso comum”, não é um ambiente de ideias macaqueadas? Quem já não passou o constrangimento de ver alguém professando com veemência uma suposta “verdade pessoal” quando está apenas repetindo o que já se sabe e o que já foi dito. E haverá ideias assim tão singulares ou originais? Mesmo grandes pensadores não
estão sempre retrabalhando ideias de outros pensadores? A cultura não é uma grande esfera de ventriloquismo social? Não foi assim surpresa a descoberta de que o argumento do filme foi “retirado” de uma historinha em quadrinhos do Tio Patinhas o que empresta ao título do filme em português uma conotação irônica, mas talvez mais verdadeira. Não há, de fato, um lugar “original” de onde se retire ou se insira uma ideia. Não há origem. Daí que nossos traumas apenas circundem incessante e fatalmente nossos vazios mentais. E nossos sonhos são armados justamente destes traumas que envolvem supostos segredos pessoais, como os agentes militarizados que defendem arduamente uma fortaleza cujo interior só tem aquilo que colocamos lá no ato mesmo de invadi-la.