Logo após sair a notícia de que a USP concedeu diplomas póstumos para estudantes que morreram nas garras da ditadura de 1964-1985, chega aos cinemas “Zé”, sobre um dos heróis caídos, José Carlos Novaes da Mata Machado, que não foi aluno da USP mas em sua rica trajetória passou por São Paulo como guerrilheiro urbano. Se a ação da universidade mostrou como a reparação histórica é importante, contar as aventuras e desventuras de quem lutou pela liberdade num momento de sufoco também é necessário – e não há meio melhor que o cinema para fazê-lo.
Zé (Caio Horowicz) é filho de um professor universitário que foi aposentado compulsoriamente da UnB, mas seu local de atuação no começo do filme é São Paulo. Depois de reencontrar e se casar com a ex-presa política Beth (Eduarda Fernandes), Zé parte para o Nordeste. Ele mantém o apelido, mas muda de nome: de Zé Carlos, passa a ser Zé Cícero.
As cartas de Zé para a família são lidas pelo ator Caio Horowicz olhando diretamente para a câmera e são um dos destaques do filme, que em nenhum momento mostra Zé pegando em armas ou em reuniões com seus companheiros para decidir as futuras ações da resistência. Interessa mais a vida familiar que a vida política do guerrilheiro, embora familiar e política se cruzem neste momento nefasto da nossa história.
Viver na clandestinidade, como você deve imaginar, não é nada fácil. Envolve mudar de nome, cortar laços familiares, renunciar às mordomias da vida pregressa, falar baixo o tempo todo, ficar sempre vigilante em relação ao que se diz, guardar os rostos das pessoas que encontra na rua, sacrificar o amor. Por isso é que se conclui, com razão, que “mudar o mundo não tem valor, mas tem preço” – um preço por vezes muito alto.
Uma camada extra de dificuldade é adicionada por Beth ser mãe solo quando reencontra Zé. Ela conta para outra companheira que, quando revelou sua gravidez, tentou ser dissuadida de ter aquele filho, pois seus companheiros diziam que a criança poderia ser usada para colher informações. A vida é mais dura para quem tem um filho para criar além das lutas coletivas contra um regime ditatorial, mas Beth não se abala: para elas, filhos são uma força, não um empecilho, para lutar por um país livre.
Quando a família de Zé advoga que ele poderia se afastar da luta por um tempo e ir para o exterior, Zé retruca que às vezes parece que “os intelectuais só imaginam o povo, vira uma figura retórica, um conceito abstrato”. Pensar o povo é diferente de conhecer o povo. Deixar o país, para Zé, seria “aceitar a derrota”. Num tempo em que a frase de ordem era literalmente “Brasil, ame-o ou deixe-o”, quem mais amou a pátria foi quem ficou e lutou por ela, embora essa afirmação não signifique que aqueles que foram para o exílio são covardes. Viver no exílio é tão difícil quanto era viver aqui na clandestinidade, e cada um sabe de suas escolhas.
Muito já se falou sobre a resistência à ditadura civil-militar em cidades como São Paulo e Brasília – é inclusive nessas localidades que se passa a história do meu romance, “Anos de Chumbo”, e me demandou uma profunda pesquisa sobre esses focos de resistência. Por isso, ver um filme sobre a luta no Nordeste expandiu meus horizontes, sobretudo sobre a luta camponesa. Descobri que a maior repressão no campo foi antes do golpe de 1964, por causa da luta pela reforma agrária. Descobri também, e me enfureceu, o fato de que centenas de mortes de militantes camponeses não foram reconhecidas ou investigadas. Nosso trabalho de reparação histórica ainda está muito longe do ideal.
“Zé” é um projeto gestado há mais de 20 anos pelo diretor Rafael Conde. Foi há duas décadas que ele tomou contato com o livro sobre José Carlos Novaes da Mata Machado, de autoria de Samarone Lima, e surgiu a vontade de contar a história também no cinema. Além do livro, para o roteiro foram usados entrevistas com pessoas que conheceram Zé e depoimentos para a Comissão da Verdade. Sobre a importância do tema hoje, Rafael comenta:
“Esses filmes (sobre ditadura) vão e voltam, sempre tem uma revisita, algo novo. E hoje vejo pessoas com cartazes na mão, pedindo ditadura. Eu fico assustado, essas pessoas não sabem o que é viver sob o regime do medo, da censura e da repressão.”
Um dos patrocinadores de “Zé” foi a prefeitura de Cataguases. No passado, houve nesta região um ciclo cinematográfico, a partir do qual surgiu para o Brasil o cineasta Humberto Mauro, que realizou cinco filmes em Cataguases, sendo estes filmes recheados de cenas de ação, como os produtos hollywoodianos que faziam sucesso por aqui, mas apresentando a natureza brasileira.
A luta contra a ditadura era uma luta desigual, conforme Zé nos lembra quando diz que “eles” têm armas até os dentes, tanques e aviões, e linha direta com a Casa Branca. Mas era uma luta válida – mais do que isso: necessária. “Zé” é um filme corajoso que nos recorda de que lutar é preciso. José Carlos Novaes da Mata Machado, presente!