Esse artigo se dedica A parte dos crimes e A parte de Archimboldi, correspondentes a segunda metade da obra. A respeito das primeiras partes, você pode ler aqui.
2666: das partes finais
Alguém disse que a literatura é uma inutilidade. Mais que isso, disse que a leitura é uma fraqueza, uma prática de desocupados e boçais. Disse ainda que os livros extensos são, resumindo de forma clara suas palavras: a máxima representação da falta do que fazer, pois uma hora ou outra, você esquece tudo aquilo que leu. Na hora eu não entendi ao certo. Mas agora quando eu paro pra pensar, fica fácil concluir que eram apenas palavras de um preguiçoso, tentando justificar com intolerância sua ignorância, sua impaciência cultural.
Do que importa se um dia a gente esquece um livro, se um dia, a gente esquece tudo? Pensei muito nessas coisas enquanto avançava pelas partes finais de 2666, a obra máxima de Roberto Bolaño, que pelo que se convencionou, pode ser resumida em duas temáticas principais: a violência e o amor pelos livros.
Comecemos pela violência:
A parte dos crimes
“Uma mulher decente e boa. Uma mulher que você, sem querer, trata mal. Por costume. Ficamos cegos (ou, pelo menos, caolhos) por costume, Harry, até que de repente, quando nada mais tem remédio, essa mulher adoece em nossos braços. Essa mulher preocupada com todos, exceto com ela mesma, começa a murchar em nossos braços. E nem mesmo então percebemos, disse Ramírez.” (Roberto Bolaño em 2666).
A parte das mulheres mortas. Das inúmeras mulheres mortas, apresentadas uma a uma, suas breves vidas e suas mortes fatídicas, seus corpos encontrados jogados pelo deserto ou pelos lixões. A parte das investigações infrutíferas, da polícia fracassada, ou mesmo, desinteressada pelo destino dessa multidão de miseráveis violadas e largadas sem a menor consideração. Na parte dos crimes, tem de tudo – pelo menos de tudo que é cruel, que é injusto. Tem estupro, violência doméstica, corrupção e, sobretudo, um machismo doente de homens doentes que vão matando aos poucos suas mulheres. Matando de uma morte por desrespeito.
É sobre a violência. A violência que nasce pequena, que nasce verbal, que nasce numa piada, numa brincadeirinha que se julga inocente, mas que cresce, se espalha e toma proporção. A violência pequena que termina em sangue. Desde os pequenos desrespeitos do dia-a-dia, os desrespeitos costumeiros e tradicionais à violência física, à violência sexual. A violência crua e exposta de forma sensacionalista. Chega ser revoltante a corrupção generalizada, a falha generalizada dos sistemas humanos.
É uma linguagem dura, é uma temática pesada. É um murro na boca do estômago de uma sociedade muito conformada com o estado das coisas. A verdade é que a idéia de América Latina (ou por que não? de mundo) de Bolaño é grave e muitas vezes difícil de assimilar.
2666 investiga muito mais que uma série de crimes, procura muito mais que um culpado, procura na verdade uma causa social. Investiga a corrupção do gênero humano e busca a construção de um quadro geral, um quadro de estruturas humanas, das quais os crimes são apenas um resultado.
Na parte de Archimboldi a literatura é a temática mais evidente. Seus personagens são leitores incríveis, gente apaixonada pela literatura, pela ficção e pelas boas histórias. É das partes a que cobre o mais vasto espaço de tempo, vai desde os anos 1920, da infância de Archimboldi, atravessando a Segunda Grande Guerra e, finalmente, culminando nos anos 2000, na sua velhice e na sua chegada ao México, à cidade das mulheres assassinadas. A parte de Archimboldi é sobre isso. Sobre livros e sobre tempo. Sobre a passagem do tempo que apaga a existência dos livros ou os eterniza, os transforma em clássicos – embora eu nunca saiba quando é correto utilizar essa palavra.
O que nos leva de volta àquele alguém que certa vez me disse, ou mesmo, me repreendeu a respeito da inutilidade da literatura. Acho que ele disse isso sem pensar, ou pelo menos sem saber o que Bolaño tinha a dizer, a ensinar sobre a necessidade da ficção.
Ao ler 2666, fica muito claro o amor de Bolaño pelo que fazia, ele vivia escrever, ele vivia a leitura, e mais que isso, escrevia para pessoas parecidas, pessoas que lessem, simplesmente, porque queriam. Apenar isso, ler, apreciar uma boa história. Pelo menos é assim que eu vejo.
Atualmente há esse grande alarde em torno da obra de Bolaño, a crítica especializada rasga seda, o público se apaixona. Mas acho que a grande reflexão da parte de Archimboldi é a essa terrível tormenta, esse medo dos escritores de serem esquecidos, de suas obras não sobreviverem ao tempo, não chegarem à posteridade. Num futuro, digamos que em 2666, talvez não se ouça mais falar de Bolaño, o que seria uma pena. Daí talvez a juventude desse futuro hipotético estivesse lendo alguma coisa mais efêmera, porém pra época, atual. Eles não sabem nada sobre Bolaño, sobre 2666, também não se importam. Mas talvez tenha sempre um senhor: a idade avançada, sentado num banco de praça, o ar de velho sábio, olhando pra seus contemporâneos mais jovens e pensando: no meu tempo as coisas costumavam ser diferentes. Talvez esse velho se lembre.
Já disse que o livro é, basicamente, sobre literatura e violência, mas acho que posso acrescentar que também é sobre o tempo.
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ROBERTO BOLAÑO nasceu em 1953 e é o autor de Detetives Selvagens, Noturno no Chile e Putas Assassinas, entre outros importantes sucessos que o colocaram entre os grandes nomes da literatura da América Latina. Morreu em 2003 de insuficiência hepática, deixando 2666 por publicar. No Brasil, suas obras foram traduzidas pela Cia. das letras.