Durante muito tempo, tudo que eu soube sobre a obra prima de Roberto Bolaño, 2666, podia se resumir em algumas informações básicas: um livro extremamente grande e complicado que de tão grande e complicado era completo e incrivelmente bom. Pois bem, faz quase um mês que comecei a empreitada, ou mesmo, jornada ao longo das quase 900 páginas que compõem a imensa estrutura narrativa de 2666 e posso dizer com certeza apenas duas coisas: 1) talvez, no conceito dos críticos literários, eu nunca tenha lido um livro incrivelmente bom, não podendo assim, afirmar de um ponto de vista especializado e dito incontestável, mas se a classe dos livros incrivelmente bons existe, 2666 deve inevitavelmente estar entre eles 2) existem inúmeros tipos de leitores e imagino ser bastante razoável acreditar que a trama tenha se manifestado de formas diferentes para os supostos inúmeros tipos, mas nenhum deles pôde se manter indiferente.
Roberto Bolaño morreu em 2003, apenas um ano antes da primeira publicação de 2666, na Espanha, onde o autor chileno morava desde 1977. A recomendação deixada pelo escritor aos seus herdeiros em relação a esse livro era a de que o publicassem em cinco volumes separados, um por ano e com valores pré-estabelecidos. Os herdeiros, no entanto, mais preocupados em preservar o monumento literário deixado por Bolaño do que com a possibilidade de maximizar os lucros – intenção de ordem prática que motivou a mencionada recomendação – organizaram a obra da forma que a conhecemos hoje, um volume único dividido em cinco partes:
A parte dos críticos, A parte de Almafitano, A parte de Fate, A parte dos crimes e A parte de Archimboldi. Cada parte trabalha a partir de tramas próprias, aparentemente, desconexas, mas que uma hora ou outra convergem para um ponto único e principal. Esse artigo, na verdade, dedica-se as três primeiras partes.
Numa cidadezinha fictícia na fronteira do México com os Estados Unidos, uma série de assassinatos de mulheres vem atormentando a população por já quase dez anos sem que se encontre definitiva solução. Já se ultrapassam as 200 vítimas quando, da Europa, chegam quatro importantes críticos literários, no rastro de Archimboldi, um misterioso escritor alemão, objeto da devoção dos críticos, do qual nunca se soube o paradeiro. Essas figuras que, por virem da Europa, se imaginam mais educadas, civilizadas e abençoadas por uma superioridade intelectual que os latino-americanos jamais conhecerão, se chocam com a realidade mexicana, de miséria, de corrupção e de violência.
Basicamente, é isso. Mas em 2666 nada é tão básico nem tão simples assim.
As particularidades de cada personagem, de cada fato, de cada morte são apresentadas uma a uma ao longo das partes, expondo a importância, mesmo que ínfima, de cada um nessa história.
A parte dos críticos
Na primeira parte, descobrimos o que os críticos têm em comum – a paixão incondicional por Archimboldi – e todas as suas diferenças. Dos pequenos traços que compõem a personalidade de cada personagem até o momento em que eles se encontram e, a despeito das incompatibilidades, tornam-se amigos em prol da devoção em comum. A parte dos críticos é lenta, calma, cadente e talvez a mais sensível. A arte, sobretudo a literatura, é a temática mais recorrente; o valor da arte – e em oposição a isso, o valor da crítica.
A parte de Almafitano
Ao chegarem ao México, os críticos são apresentados a um professor universitário particularmente frustrado e desestimulado com a vida. Esse é Almafitano e a segunda parte é dedicada a ele. As principais temáticas dessa parte são a loucura, a melancolia e a dor de existir, e é interessante que esses temas se evidenciam mesmo no estilo com o qual Bolaño desenvolve a parte. Os acontecimentos d’A parte de Almafitano são de antes da chegada dos críticos ao país, quando Lola, a até então esposa do professor melodramático, o abandona em companhia de sua filha Rosa, e parte, no auge de sua loucura, em busca de um poeta com o qual diz ter vivido uma arrebatadora experiência amorosa – provavelmente fruto de sua imaginação. Largado nessa cidade amaldiçoada pela violência, Almafitano passa a ser atormentado pelo medo cada vez mais constante de ficar louco. Numa narrativa onde não se pode ter certeza do que realmente acontece e do que é apenas imaginação dos personagens, o autor procura transmitir a delicadeza da loucura, a linha tênue entre o imaginado e o real. A parte de Almafitano é a menor e, para mim, a mais fácil, tendo em vista que achei todas as outras muito difíceis.
A parte de Fate
Fate (do inglês, destino) é um jornalista norte-americano que escreve para uma revista voltada para o público negro. Fate é negro. Praticamente todos os personagens norte-americanos nessa parte são negros também – diferente do estereótipo hollywoodiano com o qual a maioria está acostumada (eu incluso). Fate tem acabado de perder a mãe, quando é enviado a trabalho para o México, para uma cidadezinha fronteiriça, de nome Santa Teresa, onde mulheres vem sendo assassinadas há quase dez anos. Mas ele não sabe disso. Seu intuito é cobrir uma luta de boxe entre um ídolo norte-americano e um mexicano, o que nos leva a mania de grandeza e de superioridade dos estadunidenses em relação aos demais países que compõem a América. Para mim, essa é a temática principal d’A parte de Fate: o poderio norte-americano e o complexo de inferioridade dos demais países, e no meio disso, Fate. Um negro e todo o histórico de descriminação racial a que somos remetidos. De qualquer forma, o protagonista acaba envolvido com a violência e com a trama das mulheres mortas, o que diriam algumas, só pode ser coisa do destino.
A parte seguinte, A parte dos crimes, é a mais longa e pelo que me toca, a mais difícil. No momento em que escrevo esse artigo, estou empacado na página 500, pra lá da metade da parte em questão. A descrição dos crimes é crua, é fria e minuciosa, tal qual um jornal sensacionalista, mas aos poucos estou avançando.
Próximo artigo:
A parte dos crimes e A parte de Archimboldi.
[xrr rating= 5/5]
ROBERTO BOLAÑO nasceu em 1953 e é o autor de Detetives Selvagens, Noturno no Chile e Putas Assassinas, entre outros importantes sucessos que o colocaram entre os grandes nomes da literatura da América Latina. Morreu em 2003 de insuficiência hepática, deixando 2666 por publicar. No Brasil, suas obras foram traduzidas pela Cia. das letras.