A mão esquerda de Deus

No primeiro capítulo de A mão esquerda de Deus (The left hand of God, tradução de Fabiano Morais), publicado com o selo Suma de Letras da Objetiva, um menino de pouco mais de 14 anos, junto com outros tantos, padece sob um regime severo e brutal. Thomas Cale é o seu nome, pelo menos como os Redentores o rebatizaram. Cale é um dentre milhares de jovens que, tomados de suas famílias em tenra idade, crescem sendo treinados para sobreviver, para não terem medo, para se tornarem acólitos de uma guerra santa. Ali no sombrio e desolado Santuário do Senhor Redentor Enforcado, uma espécie de fortaleza-prisão, dirigido pelos Lordes Redentores, todos são preparados para o conflito eminente contra os Antagonistas e todos aqueles hereges que caminham no pecado e na depravação.

Cale fora treinado de forma diferente, com muito mais “cuidado”, para não dizer supliciado. O garoto foi submetido a um treinamento bem mais duro que os demais, pois possui um dom dos mais especiais e pode antecipar o próximo movimento de um inimigo para derrotá-lo em segundos. Um talento que moldará o seu destino.

Escrito pelo inglês Paul Hoffman, o livro é de uma narrativa rude, agressiva, pesada… Viciante. Inspirada na própria experiência do autor, que quando adolescente estudou num internato cercado por muros medievais, onde os padres faziam de tudo com os garotos menos matá-los, A mão esquerda de Deus é uma crítica aos excessos religiosos, mergulhada no gênero fantástico.

Ambientada numa espécie de Idade Média alternativa, a história nos envolve numa atmosfera sombria e violenta. Mas  o leitor poderá estranhar, pelo amálgama de períodos históricos, o autor abordar um mundo onde a Inquisição, as cruzadas, a guerra de cem anos, a Itália renascentista com seu doge e tudo coexistem. Cale vive então neste cenário, de contínua luta psicológica e espiritual, atenuada pelos duros treinamentos. Uma mistura do terror de Auschwitz e do lugar de aventuras que conhecemos em Hogwarts, o Santuário tem em seus dirigentes, verdadeiros demônios, homens cruéis, “santos” que levam qualquer falha à morte. Escapar daquele inferno é o que almeja qualquer um daqueles jovens.

Cale consegue realizar esse feito, juntamente com dois de seus melhores amigos, Henri Embromador e Kleist. Após presenciar um ato inimaginável de um de seus mentores, empreende uma fuga que o levará ao desconhecido, a conhecer cidades, pessoas e coisas que jamais imaginaria que existisse e a uma guerra que não poderia ocorrer. Sem esquecer do sentimento abrasador da paixão.

A narrativa inicialmente confusa, atenuada pela descrição do Santuário e seus líderes, se engrena numa rapidez que não desapontará os amantes da literatura fantástica. Contudo, as extensas descrições que o autor faz dão um aquém de monotonia ao texto. Mas só em alguns momentos da leitura, pois em sua maioria, a narrativa é bem delineada. Os capítulos finais pulsam de ação e ritmo, e o desfecho inesperado pode apresentar questões abertas sobre o destino dos personagens. Pormenores que remoeremos até o lançamento do segundo volume da trilogia As três visões.

A Mão Esquerda de Deus fascina pela diferença e curiosidade de sua narrativa. Mas também levantará ressalvas para a história de Thomas Cale. Um contraste com qualquer outro personagem juvenil, como Harry Potter, Artemis Fowl ou Lyra Belacqua, e suas peripécias na mesma temática. Hoffman nitidamente aborda a dor e o prazer de ser um assassino com apenas 14 anos. Por fim, após a leitura, se entregue também a qualquer um Assassin’s Creed e desfrute as mesmas emoções que Thomas sente ao domar sua espada.

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