Esse punhal do Pajeú,
faca-de-ponta só ponta,
nada possui da peixeira:
ela é esguia e lacônica.
(Facas pernambucanas)
Ó jardins enfurecidos,
pensamentos palavras sortilégio
sob uma lua contemplada;
jardins de minha ausência imensa e vegetal;
ó jardins de um céu
viciosamente frequentado:
onde o mistério maior
do sol da luz da saúde?
(Poesia)
A luz de três sóis
ilumina as três luas
girando sobre a terra varrida de defuntos.
Varrida de defuntos
mas pesada de morte:
como a água parada,
a fruta madura.
/ (…) /
E morte ainda no objeto
(sem história, substância,
sem nome ou lembrança)
abismando a paisagem,
janela aberta sobre
o sonho dos mortos.
(A paisagem zero)
A bailarina feita
de borracha e pássaro
dança no pavimento
anterior do sonho.
A três horas de sono,
mais além dos sonhos,
nas secretas câmaras
que a morte revela.
Entre monstros feitos
a tinta de escrever,
a bailarina feita
de borracha e pássaro.
Da diária e lenta
borracha que mastigo.
Do inseto ou pássaro
que não sei caçar.
(A bailarina)
Desordem na alma
que se atropela
sob esta carne
que transparece.
Desordem na alma
que de ti foge,
vaga fumaça
que se dispersa,
informe nuvem
que de ti cresce
e cuja face
nem reconheces.
Tua alma foge
como cabelos,
unhas, humores,
palavras ditas
que não se sabe
onde se perdem
e impregnam a terra
com sua morte.
Tua alma escapa
como este corpo
solto no tempo
que nada impede.
(Pequena ode mineral)
No ano do centenário do poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto, a Companhia Editora de Pernambuco (Cepe) lança João Cabral de ponta a ponta, uma edição revisada e enriquecida com material inédito, onde estão reunidos estudos dedicados a toda a obra publicada pelo poeta pernambucano, realizados pelo escritor, professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Letras da UFRJ e membro da Academia Brasileira de Letras, Antonio Carlos Secchin.
Secchin passou mais de 35 anos debruçado sobre as escritas cabralinas. No título de 598 páginas o leitor descobre um ensaio sobre Cabral e Carlos Drummond de Andrade e valiosas imagens com reprodução de dedicatórias importantes e de capas raríssimas de obras do autor.
O livro conta com uma importante entrevista de Cabral concedida a Secchin em 1980; a última palestra do poeta em ambiente acadêmico (na Faculdade de Letras da UFRJ, em 1993); todo o material analítico dos 20 títulos de João Cabral, expostos cronologicamente de acordo com as datas das publicações. Sem falar nos cinco ensaios sobre temas transversais da poesia do autor e de suas relações com outros escritores. Este último material de pesquisa foi publicado em 2014, pela extinta Cosac Naify, sob o título João Cabral: uma faca só lâmina.
“É um orgulho publicar, dentro da programação do centenário de João Cabral de Melo Neto, uma obra que se dedica aos meandros da sua poesia, do primeiro ao último livro. João Cabral de ponta a ponta é a versão ampliada e consolidada das pesquisas de Secchin sobre o poeta; parte do trabalho de uma vida dedicada à literatura. É uma edição para conhecer a poesia cabralina em profundidade, pois o autor traz leituras essenciais da produção tardia de João Cabral, pouco lembrada pela crítica. Na edição da Cepe Editora, temos ainda material inédito, com um novo ensaio, uma entrevista, um depoimento e imagens de exemplares raros colecionados por Secchin. Além de tudo isso, o ensaísta consegue mostrar como ninguém, ao longo do volume, a vitalidade e novidade do poeta pernambucano para os leitores atuais”, resume o editor da Cepe, Diogo Guedes.
Nos detalhados estudos críticos, há espaço também para comentários de outros críticos sobre os livros de João Cabral. Tanto sobre o que os críticos mais falam quanto sobre o que eles preferem ignorar. Poucos críticos destacavam, por exemplo, o caráter de humor de suas poesias, como o próprio João Cabral observava, segundo Secchin.
“Um humor cortante, quase agressivo, eu acrescentaria, bem típico de quem maneja uma faca só lâmina”. Título de um dos livros de João Cabral, Uma faca só lâmina (1955) é obra de mais de 300 versos hexassílabos. Outros livros ignorados pela crítica são A escola das facas (1980), O Auto do frade (1984) e Agrestes (1985). “Considero que muitos se dão satisfeitos com a digamos, fase um de Cabral, que se encerra em 1968: ele entra na Academia Brasileira de Letras e publica, com grande sucesso de público e de crítica, sua Poesias completas. Quando retorna ao verso, em 1975, o contexto cultural já é outro, o da ‘poesia marginal’, e ele fica numa espécie de limbo, um poeta-‘monumento’ que pouco teria de novo a dizer. Mas não foi o que ocorreu”.
Averso ao poema lírico, Cabral se autodenominava antilirista. “Minha poesia é intelectual, em alguns livros, é uma poesia de crítica social à situação nordestina, é uma poesia, como dizem os críticos atuais, metapoesia, uma poesia sobre a poesia, mas não é uma poesia lírica. Eu tenho a impressão de que a verdadeira poesia lírica hoje está sendo feita pelos compositores de música. Os grandes líricos do Brasil hoje chamam-se Caetano Veloso, Chico Buarque de Holanda”, diz João Cabral a Secchin. Para ele, o trabalho poético era como um trabalho manual.” Ele recorre a comparações com atividades manuais – as do ferreiro, do toureiro, do pescador – exatamente para retirar da poesia a aura do sublime, como efeito de inspiração reservada aos poucos eleitos ou iluminados. Cabral não é um iluminado, é um iluminador”.
O poeta de Morte e vida severina (1966), seu maior sucesso, transformado em peça de teatro e “best-seller absoluto na história editorial da poesia do país”, nas palavras de Secchin, er grande apreciador da temática sertaneja. O cão sem plumas (1950), O rio (1953) e A educação pela pedra (1966) são obras que tratam do tema. Mas ao estilo cabralino: “O Sertão de Cabral é singularmente silencioso. Não há urros animais ou gritos humanos, estrondo de águas, sequer o crepitar de folhas sob um sol assassino, ou o impacto de cascos na caatinga. Reduzida a sua expressão mais tosca — as pedras, o rio, e de vez em quando alguma coisa viva aí no meio —, a natureza, ainda assim, não cessa de falar (…) O Sertão não é unicamente um lugar; é um estilo. Captá-lo, traduzir-se nele, significa estar atento a suas numerosas configurações, sobretudo as discursivas”. Cabral aproximou o Nordeste brasileiro à Espanha, país onde exerceu sua profissão de diplomata – viveu fora do Brasil durante 40 anos. Na cidade de Sevilha encontrou semelhanças com a paisagem nordestina e se encantou, elegendo esses dois espaços como os mais importantes de sua vida.
“Descobri nesse poeta crítico que força criadora e rigor analítico podem partilhar o mesmo solo de linguagem. Convivi com poemas que não propõem um estoque de saberes, mas o exercício de sucessivas desaprendizagens para aprender melhor aquilo de que o olhar domesticado não consegue dar conta, na travessia tormentosa para o novo”, elogia Secchin.
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