Do Fumódromo ao livro: Lulu Mendes fala sobre o processo criativo de “Magia do Desejo Suave”

Lulu Mendes lança sua primeira obra de autoficção,“Magia do Desejo Suave” (120 páginas, Editora Minimalismos)”, uma coletânea de 19 contos que mesclam humor e drama. Através de personagens e situações cotidianas, Mendes explora temas como identidade e vício, oferecendo uma reflexão profunda sobre a vida moderna. 

Natural de Campinas, Lulu Mendes cresceu em Hortolândia e mudou-se para São Paulo em 2016, onde estudou jornalismo. Com experiência no mercado de moda e contribuições para grandes publicações, atualmente colabora em projetos jornalísticos e publicitários para a Globo pela Agência Canarinho. Mendes é fortemente influenciado por autores como Virginia Woolf e Nelson Rodrigues, o que se reflete no estilo singular de sua escrita. 

“Magia do Desejo Suave” nasceu a partir de uma newsletter, Fumódromo, que o autor manteve entre 2022 e 2023. A obra, dividida em três partes — “Acender”, “Tragar” e “Apagar” —, traduz o ciclo do desejo e seu impacto na vida de seus personagens. Com histórias que abordam desde as consequências das eleições de 2022 até questões contemporâneas como o “ghosting”, Mendes apresenta um retrato autêntico e relevante de uma geração que vive a era digital. 

Para conhecer mais sobre o autor e seu processo criativo, confira a entrevista completa abaixo. 

Se você pudesse resumir os temas centrais do livro, quais seriam? Por que escolheu esses temas? 

Acredito que temas como desejo, identidade, luto e vício sejam centrais no livro. Eu venho habitando esses temas há alguns anos, e penso que quem escreve geralmente se utiliza de questões que a própria vida impõe. Tentamos fazer alguma coisa com isso. No meu caso, senti cada vez mais necessidade de me expor, e isso foi muito movido pelo benefício da dúvida. Escrevi grande parte dessas histórias como quem conta um segredo a um estranho. 

Em sua análise, quais as principais mensagens que podem ser transmitidas com a sua obra?

Que precisamos de histórias pra poder viver, que nem tudo é o que parece ser, que podemos sobreviver às lacunas, ou seja, àquilo que nunca daremos conta de responder e que o brasileiro gosta de doces bem doces. 

O que motivou a escrita do livro? Como foi o processo de escrita? 

Não era para ser um livro à princípio. Eu escrevi uma newsletter chamada “Fumódromo” entre maio de 2022 e janeiro de 2023, e depois de publicar o último texto pensei: o que eu vou fazer agora?  Então comecei a escrever algo “novo” que, por acaso, repetia os mesmos temas e também a mesma forma narrativa. Como se ainda não os tivesse superado, ou como se precisasse continuá-los. Sabe essa sensação de inacabamento? Para um taurino como eu isso é a morte. Então, em vez de continuar esse novo projeto, decidi que olharia com mais calma para tudo que foi produzido nos últimos anos. Não apenas as histórias que foram publicadas na newsletter, mas o que foi engavetado nesse processo também. Percebi que havia uma harmonia ali – entre os assuntos, claro – mas antes disso no ritmo dos textos, no tom confessional desse narrador. Havia também muitos ruídos entre uma história e outra, algumas pareciam não pertencer ao “projeto”. Me propus a partir daí um desafio: organizá-los, criar uma sequência onde cada história pudesse ser ela mesma. Reescrevê-las, sim, e principalmente lapidá-las, deixar apenas o essencial. Foi como montar um quebra-cabeça. A última pecinha foi o último texto, que, por fim, me revelou muitas coisas. 

O que esse livro representa para você? 

É engraçado. Esse é um livro que retrata especificamente o desejo e, para mim, que sou um autor brasileiro iniciante, ele pode representar muitas coisas: a realização de um sonho, emancipação, autoralidade… Tantas coisas. Mas no fim, o que aconteceu comigo quando escrevi o último texto neste livro, uma história chamada “O Presente”, foi uma espécie de epifania: finalmente saquei qual era a questão do meu narrador.  Descobri que, em primeiro lugar, eu já tinha um livro. Em segundo lugar: não era apenas um livro sobre alguma coisa (sobre o desejo, por exemplo, ou sobre desejar) era também meu próprio desejo em escrevê-lo tentando se dizer.  

Por que escolheu o gênero adotado? Desde quando escreve dentro do gênero?

Quando comecei a escrever blogs, em 2010, eu comecei a alimentar um sistema de crenças. Primeiro de que a internet seria o lugar certo para narrativas curtas, gênero que eu já me familiarizava. Depois, movido pela  ideia de que esse “eu” tinha muito a dizer, me vi muito confiante de que a  autopublicação seria minha chance de mostrar o que eu podia fazer. Penso que esse fenômeno, ou seja, essa noção moderna de que “o meu pensamento importa” respinga em toda minha trajetória até aqui. Eu fui para a faculdade de jornalismo, por exemplo, imaginando que isso me ajudaria a ser um cronista de jornal, algo desconexo com o período em que iniciei a graduação.  As redações estavam demitindo funcionários em massa, as empresas de mídia se reconfigurando, e se você não era da velha guarda ou ao menos um blogueiro famoso – o que não era meu caso – de que outra maneira teria espaço na imprensa tradicional? E ainda de maneira tão literária? Parecia distante demais, beirando o impossível, e hoje mais ainda. 

Sobre gênero, percebo muita dificuldade em delineá-lo, e isso eu digo como leitor também. Parece que está na moda ir até uma livraria descolada no centro da cidade e descobrir que o novo livro da autora X é um “romance ensaístico experimental” ou uma “autobiografia social”. É tudo muito híbrido. 

Não diria que meu livro se trata de um livro de crônicas exatamente pela forma como as crônicas tradicionalmente são escritas. Diria que o conjunto dele retrata um tempo específico, ou seja, o conjunto é a crônica de um período. São autobiográficas? Sim. Mas se é conto autoficcional ou crônica, eu deixo para os leitores de livrarias hypadas e, claro, aos especialistas. 

Como a bagagem dos livros anteriores ajudou na construção da obra?

Pois é, eu publiquei um livro de contos e crônicas exatamente dez anos atrás. Escrevi entre os dezesseis e dezessete anos… Naquela época eu estava um pouco obcecado pela ideia de ter uma voz ou ser uma voz da minha geração. Não necessariamente alguém famoso, mas alguém que reflete o tempo que vive, alguém que amplifica o que está sendo dito ou o que está por vir. Em resumo, alguém que mostra o que está no nariz de todo mundo e ninguém vê porque está distraído. Este livro, que se chama As Trágicas Consequências de se Apaixonar, foi publicado no Kindle da Amazon numa época em que ninguém lia e-books. Não sei se ajudou muito na construção do Magia, mas é engraçado que eu tenha persistido na escrita por tantos anos e, novamente, no mesmo gênero. Mais uma vez: deve ser coisa de taurino teimoso.

Quais são as suas principais influências artísticas e literárias? 

Eu comecei a ler e escrever muito novo; quase tudo que eu já li me influenciou um pouco em momentos diferentes da vida. Mas no período em que escrevi e reescrevi o livro, eu estava lendo Nelson Rodrigues, principalmente as crônicas e as confissões. O livro “O óbvio ululante”, que é citado em um dos textos do livro, me inspirou um pouco essa sem-vergonhice que o Nelson tinha. 

Em geral, foi uma época em que eu li muitos livros de não-ficção de grandes romancistas. Kafka em Carta ao pai, Virginia Woolf em Um teto todo seu, Herman Hesse em Este lado da vida (que é de contos, mas com forte apelo autoficcional), Hemingway em Paris é uma festa. Joan Didion é outra que gosto muito. Não li tudo dela, mas o que eu li, eu adoro. Annie Ernaux foi uma descoberta mais recente, que coincidiu com o período de reescrita do livro. Quando li “A Vergonha” pensei: “Meu Deus. É isso”.

Como você definiria seu estilo de escrita? 

Flávia Medeiros, amiga escritora que me ajudou como leitora beta desde a newsletter até a estruturação do livro, escreveu um depoimento reverberando sua leitura final, que mais tarde virou uma lindíssima resenha no Le Monde Diplomatique. Ela diz que a novidade desse livro não está nas multicamadas que ele propõe “e sim no fato de como o autor nos traz de volta à superfície textual, onde já não seremos os mesmos”. 

Foi a coisa mais bonita que alguém já disse sobre o que escrevo. Claro, ela é minha amiga pessoal, poderia dizer isso só para me agradar. Mas vocês não conhecem a Flávia. Ela não leva desaforo pra casa quando o assunto é leitura. 

Dito isso, eu diria que tudo que escrevo parte de uma situação superficial que cresce, que toma outras proporções no texto sem deixar de retomar a questão inicial, que pode ser um lugar, uma imagem, uma sensação etc. O humor é um traço forte também, além de um terreno confortável pra mim. Diria que, nesse livro em específico, as histórias são abertas propositalmente. Tentei escrever o mais simples possível, o que é muito difícil. Às vezes meu narrador é nostálgico, às vezes é analítico, e frequentemente é romântico mas sobretudo confessional: é exposto e contido; afetuoso e racional ao mesmo tempo. 

Eu costumo dizer que o livro é cor-de-rosa mas no fim do dia ele é furta cor: a tonalidade se altera de acordo com a luz que recebe.

Como começou a escrever?

Meu primeiro contato foi com a dramaturgia. Na quarta-série entrei pro clube da escola, que iria encenar no fim do período O Cavalinho Azul da Maria Clara Machado. Fiquei tão entusiasmado com a ideia de interpretar Vicente, o protagonista, que arrisquei fazer o teste pro papel e adivinha? Passei. Fui em dois ensaios e depois faltei em todos. Faltei tantas vezes (os ensaios eram na parte da manhã e eu estudava à tarde, então me senti “sobrecarregado” demais pra dar conta de tudo) que a professora do clube me desclassificou. Depois de muito insistir ela me deu mais uma chance de ainda participar da peça, mas com uma condição: escrever um ótimo texto de apresentação sobre a autora, sobre os personagens etc. Se ela gostasse muito, eu poderia usar um smoking feito de neoprene e ser o apresentador do espetáculo. 

Quando leu meu texto, ela disse: “isso é uma crônica. Uma bela crônica”. Não entendi nada. As pessoas vinham falar comigo e eu dizia “eu escrevo crônicas”. Devia ter ali alguma coisa pessoal para além do que eu devia fazer, que em linhas gerais era apenas dar ênfase à obra de uma dramaturga. Só sei que riram mais da minha apresentação do que da peça. A questão é: riam de mim ou comigo?

Você tem algum ritual de preparação para a escrita?

Não. O que eu mantenho, e isso nem deve se chamar de ritual, é o hábito de escrever diários. Tenho diários de sonhos e diário pessoal. Esse último eu também uso como um “diário de escrita”. 

Quais são os seus projetos atuais de escrita? O que vem por aí?

Quero continuar um projeto engavetado, que ainda não sei para onde vai, mas até agora tem três personagens bem interessantes. Também pretendo escrever uma peça. Uma comédia. Veremos.

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