Na primeira das 28 crônicas do livro Inventário de Vagas Lembranças (Editora Penalux, 82 pág) a escritora e crítica literária Márcia Silveira (@marcia_silveira) alerta: a obra contém doses de melancolia. A honestidade escancarada da autora pode parecer acintosa num primeiro olhar desatento. No entanto, o aviso é uma prova da generosidade da escritora, que propõe tatear a memória e dar voz a dores, anseios e angústias, e assim, desnudar-se, para oferecer ao leitor um pouco de si a cada página. Na obra, Márcia traz à tona temas bastante comuns, como infância, família e luto, tratando-os de forma singular.
A autora se destaca pela cadência na escrita de suas crônicas, costurando sua argumentação com coesão e coerência, selecionando as melhores palavras e inscrevendo sua sensibilidade em cada letra. Essa habilidade pode ser apreciada em especial nas seis crônicas intituladas “Efêmeras”. Nelas, expõe sentimentos e pensamentos de forma ainda mais curta, mas sem perder a magia da crônica, evidenciada pela escrita assertiva e terna. Os textos soam quase como rascunhos, lembretes, devaneios, e por isso mesmo ainda mais pessoais e reveladores.
Se você pudesse resumir os temas centrais do livro, quais seriam?
Os textos passam por diversos assuntos, mas acho que os mais presentes são as relações familiares, as memórias de infância e o luto.
É uma coletânea de crônicas em que busco resgatar momentos da minha vida, como recordações da infância e acontecimentos do dia a dia em família. Fatos que, com o passar do tempo, acabam ficando perdidos na memória e a escrita ajuda a trazer de volta. Apesar de a crônica ser basicamente um gênero de não ficção, é inegável a importância da imaginação no momento de preencher as lacunas que a memória não consegue alcançar, e isso é demonstrado no título do livro, nas epígrafes e no último texto. É um livro de crônicas, mas alguns textos se aproximam muito do conto.
Por que escolher esses temas?
Quando decidi realizar o desejo antigo de ser escritora, eu havia acabado de perder minha mãe. Acredito que esse fato me levou a relembrar a minha infância e adolescência, quando estávamos sempre juntas.
Porém, apesar de minhas crônicas tratarem de experiências pessoais, um texto traz sempre a possibilidade de conexão e identificação com quem lê – e essa é uma das riquezas da literatura. Espero poder alcançar leitores que se identifiquem com os meus textos e que eles possam, assim, revisitar suas próprias memórias, como escreveu a escritora manauara Myriam Scotti na orelha do livro.
O que motivou a escrita do livro? Como foi o processo de escrita?
Por algum tempo, eu me senti paralisada na hora de escrever crônicas. Um dos motivos era achar que meus textos eram muito melancólicos – e no primeiro texto do livro eu falo sobre isso.
Além disso, muitas vezes eu pensava em escrever sobre um acontecimento da infância, mas me autocensurava, por não confiar na memória. Será que foi assim mesmo que aconteceu? Somado a isso estava o fato de que tenho irmãs mais velhas, que poderiam – elas sim – se lembrar daquelas situações e me questionar sobre os textos.
De tanto pensar, desistia e só me arriscava a pôr no papel os acontecimentos mais recentes.
Mas um dia entendi que a memória é assim mesmo, ela prega umas peças na gente. Eu poderia perguntar às minhas irmãs sobre os episódios em questão, mas então estaria escrevendo sobre as memórias delas, e não as minhas.
Assim, decidi que escreveria sobre o (pouco) que me lembrava, sabendo que as lacunas seriam preenchidas pela imaginação. A autocensura continuava me perturbando, claro, então vários textos eram escritos e rapidamente arquivados, porque ali, escondidos numa pasta do computador, estariam a salvo dos olhares alheios. Algumas vezes, sempre desconfiada de minha memória, escrevi sobre alguns episódios como se fossem contos, mudando os nomes das pessoas envolvidas e deixando a imaginação voar ainda mais.
Quais são as suas principais referências como autora? Que livros influenciaram diretamente a obra?
Não consigo identificar nenhuma influência direta, mas li muitas crônicas ao longo da vida. Isso deve ter influenciado de alguma forma.
Aos 12 anos, quando decidi que seria escritora, foi por influência das crônicas que lia, principalmente as da coleção Para Gostar de Ler, da editora Ática. Eu dizia que seria cronista, porque adorava a espontaneidade e o humor da crônica.
Hoje, eu leio muita coisa e gosto de muita coisa, mas tenho me sentido especialmente atraída por narrativas que unem biografia e ensaio, como as de Annie Ernaux e Felipe Charbel. Na área da crítica, admiro a escrita do José Castello e do Paulo Roberto Pires.
Embora o meu estilo de escrita seja diferente daquele dos cronistas que lia na infância e hoje eu me dedique mais a outros gêneros (como a crítica literária e o ensaio), acho muito emblemático que meu primeiro livro publicado seja de crônicas. É um retorno ao sonho de infância.
Como você definiria seu estilo de escrita?
Acho que tenho um estilo bem direto. Sem palavras ou construções rebuscadas e, muitas vezes, com frases curtas.
Você escreve desde quando? Como começou a escrever?
Escrevo desde muito nova. Minha casa sempre teve muitos livros, porque meu pai era professor e minhas irmãs mais velhas, também professoras. Como já mencionei, aos 12 anos decidi que seria escritora. E, embora nunca tenha deixado de escrever, a vida acabou me levando por outros caminhos – me formei em Design Gráfico e trabalhei durante anos como fotógrafa – e só aos 37 anos eu decidi voltar a esse desejo inicial e me dedicar totalmente à literatura.
Como é o seu processo criativo?
Meu processo é demorado, o que, para uma pessoa ansiosa, é um problema. Muitas vezes a ideia surge a partir de alguma leitura que estou fazendo. Então eu começo a fazer anotações. Passo muitos dias tomando notas e elaborando o texto na minha cabeça, até que, um dia, sinto que é hora de escrever. E aí, sim, nessa hora a escrita da primeira versão acaba sendo rápida, porque já fiquei muito tempo antes pensando sobre aquele assunto. Depois vem a fase de revisão.
Mas isso é para os textos livres. Para a coluna que escrevo no Diário do Rio, por exemplo, preciso ser mais rápida. Leio, faço as anotações e, em poucos dias, o texto está pronto para enviar. Prazo é uma bênção (ou uma maldição).
Você tem algum ritual de preparação para a escrita? Tem alguma meta diária de escrita?
Gosto de escrever e ler tomando café, então a única coisa que faço e que poderia ser considerada um ritual é pegar uma xícara de café e levar para o escritório.
Eu não escrevo todos os dias, então não tenho uma meta. Estou sempre lendo e fazendo anotações, mas só sento para escrever depois de bastante tempo pensando no texto e elaborando-o na mente (talvez isso seja uma forma de escrever também).
Quais são os seus projetos atuais de escrita? O que vem por aí?
Quero me dedicar mais a minha newsletter, Página 23, onde escrevo sobre literatura, filosofia e arte. Também pretendo publicar um romance (que já está escrito), mas ainda não tenho previsão de data.
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