Detesto livros chatos sobre os currículos dos cursos. Mas devemos lê-los, pois é verdade que livros chatos também são necessários. As obras que tratam do currículo costumam apresentar leis e utopias, mas esquecem a essência: os assuntos e autores que nos formam como pessoas, professores, pesquisadores e autores.
Vinte e um anos estudados em filosofia! Boa parte de uma vida dedicada aos clássicos europeus. Nas disciplinas surgia um professor criativo apresentando escritos de Enrique Dussel ou algumas boas aulas segundo o hegelianismo do notável Henrique de Lima Vaz, e em simpósios alguns ousavam apresentar um cético brasileiro: Porchat. Assuntos ligados à licenciatura eram guiados por escritores como Paulo Freire e Saviani, ou algum tema sobre interdisciplinaridade fundamentado nos trabalhos de Hilton Japiassu. Na Introdução à Filosofia, por sorte, além dos escritos estrangeiros, uma alma generosa empregava Gerd A. Bornheim, Marilena Chauí e outros textos de autores nacionais. Textos esparsos sobre filósofas, feminismo, questões de gênero, racismo, apareciam provocando, rompendo as limitações desse currículo, o que é, evidentemente, um progresso fantástico. O problema é que muitas coisas surgiam fragmentadas, fora de lugar, como lampejos, travessuras daqueles que tinham consciência de que no Brasil o currículo dos cursos é europeu.
No entanto, um ícone literário brasileiro, o mais renomado entre todos os nossos escritores, o mais habilidoso com a pena em nosso país e com um acervo vasto tanto em qualidade quanto em quantidade, é completamente negligenciado. Negligenciado? Sim, estou sendo radical e provocativo, por favor, perdoe-me pela franqueza.
Durante um passeio pelos sebos do Rio de Janeiro, deparei-me com um livro desbotado e antigo de Afrânio Coutinho, adquirido a um preço elevado, que me cativou profundamente, intitulado “A Filosofia de Machado de Assis e outros ensaios”. A leitura da obra reforçou a insatisfação que sempre senti com o currículo. Eu já estava familiarizado com alguns trabalhos de José Raimundo Maia Neto e havia adquirido e lido seu livro “O Ceticismo na obra de Machado de Assis”. No entanto, a percepção que persistia em mim era de que esses ensaios se esforçavam para extrair filosofia da literatura. Esse fato não é culpa destes autores, que souberam interpretar e ler Machado de Assis com maestria, mas sim do dogmatismo que domina os cursos de filosofia e humanidades, negligenciando tais obras.
Em um currículo acadêmico de quatro anos, repleto de disciplinas, por que não incluir obrigatoriamente nos cursos de humanidades ao menos uma dedicada à literatura brasileira? Já imaginaram uma disciplina que explorasse a trilogia composta por “Dom Casmurro”, “Quincas Borba” e “Memórias Póstumas de Brás Cubas”? E, mesmo se um professor interpretasse Machado de Assis como “simplesmente um escritor”, as ricas referências filosóficas presentes em suas obras proporcionariam uma visão que desdobraria uma gama de debates e argumentos, enriquecendo as aulas. Serei franco. Muitos dos meus colegas professores lecionaram sobre “A Náusea” de Sartre e “O Estrangeiro” de Camus, porém, na minha visão franca, nenhuma dessas duas obras supera “Memórias Póstumas”. Mas…Machado de Assis não é francês…rsrs
Se esses escritores nacionais fossem integrados ao currículo dos cursos de humanidades, talvez não precisássemos discutir Montaigne, Descartes, Pascal, Kant, Nietzsche, Marx, Weber ou Bauman apenas com base nas memórias e lembranças que os professores adquiriram durante suas visitas a cafés em Paris ou em seus pós-doutorados. Os gatilhos das aulas poderiam ser diferentes, literários, considerando que filosofia e literatura são irmãs siamesas, especialmente após autores como Umberto Eco e Jorge Luis Borges. As aulas, que começam muitas vezes com uma certa pompa pedante, poderiam ter outra abordagem, iniciando com a análise dos problemas presentes na literatura brasileira e latino-americana, na periferia, na negritude e na nossa própria realidade.
Reconheço que posso estar sendo injusto. É certo que todos têm o direito de sentir saudades de Paris ou de um café delicioso desfrutado em um ambiente agradável. É natural que as pessoas compartilhem as memórias positivas de uma viagem marcante. Muitos mestres e colegas, filósofos e comentadores, amigos, abordam as obras dos clássicos com total respeito, seriedade e conexão com nossos assuntos contemporâneos. No entanto, continuo a afirmar que passamos vários semestres estudando textos secundários, e por diversas disciplinas, lendo comentadores dos comentadores de Marx, como Plekhanov, ou de Nietzsche, entre outros. Posso afirmar que li Gueroult tanto quanto Descartes.
É amplamente reconhecido que este tema não é inédito e requer discussão. Permanecemos enraizados em algumas concepções do século passado, conforme ilustrado por Paulo Arantes em seu livro “Um Departamento Francês de Ultramar”. Ora, mas se fizermos uma escolha seletiva, devemos decidir fincar nossos cursos por aqui mesmo, cavar o currículo, e escolher autores como Machado de Assis, Ruth Guimarães e Clarice Lispector, dentre outros pensadores e pensadoras, como parte integrante do currículo dos cursos de humanidades.
Próximo de concluir esta reflexão, convém mencionar que, após uma formação completa em filosofia, desde a graduação ao pós-doutorado, decidi seguir minha paixão pela literatura e cursei letras. Porém, outra profunda decepção: a filosofia não foi mencionada durante o curso. Me vem à mente: como é possível compreender Machado de Assis sem ler e refletir sobre as obras de Montaigne e Pascal?
Ao dedicar-me à leitura dos comentários literários da obra de Machado, notei que muitos descrevem o autor através de um olhar histórico, menosprezando a filosofia profunda contida nas linhas de seus escritos. Compreendo que existe uma linha tênue entre a Filosofia e a Literatura, e uma não pode ser completamente entendida sem a outra. Os cursos de filosofia sem a literatura e os cursos de letras sem a filosofia. Bem, coragem, vamos aguardar a próxima blogueira estrangeira bombar esse tema: a sorte está lançada.
Texto de Edgard Zanette, nascido em Medianeira. É pós-doutor em Filosofia pela Unicamp e professor na Universidade Estadual de Roraima (UERR). Campeão brasileiro de Xadrez Blitz, Edgard começou a jogar xadrez e a escrever aos 14 anos. Sua estreia na ficção aconteceu com o romance “Assassinato no Monte Roraima” (Editora CRV, 2023), que combina mistério, filosofia e fantasia, inspirado em sua própria expedição ao Monte Roraima.
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