Com a adaptação de Precisamos falar sobre o Kevin chegando aos cinemas, procurei dar uma boa ideia da narrativa do livro, que me impactou tanto na época que li. Abaixo o artigo:
“ A expressão de Kevin era tranquila. Ainda exibia uns restos de determinação, mas esta já deslizava para a empáfia arrogante e serena de um trabalho bem feito. Os olhos dele estavam estranhamente desanuviados – imperturbados, quase pachorrentos – e, reconheci a transparência daquela manhã (…) Aquele era o filho estranho, o menino que largara o disfarce vulgar e evasivo do quer dizer e do eu acho e o trocara pelo porte de chumbo e pela lucidez do homem que tem uma missão” – página 443.
Antes de completar 16 anos, o adolescente norte-americano Kevin Khatchadourian, surpreenderia a todos ao cometer uma chacina, uma matança sem igual no ginásio de seu colégio, nos subúrbios de Nova York. Num crime friamente calculado, Kevin usando uma balestra, dispara flechas contra sete colegas seus, uma professora e um funcionário da cantina, matando e ferindo sem uma explicação plausível. Menos para a sua mãe, Eva Katchadourian, que ao vê-lo pela primeira vez – no trecho acima – reconheceria o monstro que criara. Kevin sempre se comportou como um estranho, não gostava de nada e de ninguém, mas dissimulava o que realmente pensava. Sua mãe revendo sua difícil relação com o filho, desde seu nascimento até o dia fatídico, o assassino em potencial que criara, torturada pela culpa de que podia ser responsável de alguma maneira pelo massacre, Eva procura os porquês de tudo aquilo.
Esse é o enredo do livro Precisamos falar sobre o Kevin (We need to talk about Kevin, tradução de Beth Vieira e Vera Ribeiro; Intrínseca, 464 páginas, R$ 49,90), sétimo romance da norte-americana Lionel Shriver, agraciado com o Orange 2005, premiação inglesa de melhor romance do ano e que merecidamente o alavancou a best seller internacional. O livro é escrito no formato de cartas, onde Eva, escreve para Franklin, seu marido ausente. Perplexa de certa forma com o ocorrido, a personagem narradora repõe nas epístolas toda a sua história com seu filho, mesmo antes de concebê-lo, com suas dúvidas sobre a maternidade e a difícil escolha entre a carreira e a vida doméstica. Ao longo de suas cartas vemos seu sentimento de derrota no nascimento de Kevin, sua incapacidade de amamentação, a difícil relação que teve com o filho, um garoto intratável, que sempre demonstrara ser uma criança perversa, para citar alguns exemplos de sua maldade: aos quatro anos destruiu o que Eva mais amava – seus estudos em decoração, progredindo para traquinagens com os vizinhos, a causar a cegueira de um olho de sua irmã e ao mentir ao acusar de assédio sexual, a professora de teatro da escola. Logo, temos como resultado o impacto traumático em seu casamento e o sofrimento acuado dessa mulher perante o filho, em um impressionante monólogo, onde podemos constatar muitas vezes elementos de nosso dia-a-dia familiar, como aqueles velhos problemas que existem e sempre existirão entre pai e filhos.
Bem contemporâneo, o argumento de Precisamos falar sobre o Kevin nos mostra um caso peculiar das chacinas adolescentes em território norte-americano e revela, na visão da autora, com sinceridade e impetuosidade de quem é a culpa de tantos jovens cometerem tantas mortes. Lembremos o que Michael Moore atesta em um de seus documentários, no Canadá, país vizinho, há mais armas por habitantes do que em seu país, mas não vemos esses massacres. Shriver constrói sua ficção, não para explicar as matanças e sim compor as relações existenciais de seus personagens, evidenciando a realidade: os jovens se envolvem de forma doentia à fama, matam para se ver na mídia – ser entrevistados, analisados psicologicamente, retratados junto com os amigos e a família – mostrando o crime como algo heróico, espetacular. A autora critica bem isso, como no trecho em que Kevin, preso, responde à mãe: “Não estou fazendo papel. Eu sou o papel, ele disse, enfezado. O Brad Pitt é que devia me interpretar”, assegurando em entrevista que nos Estados Unidos, muitas pessoas não distinguem a fama do infâmia criminosa, querem somente ser reconhecidos, como no caso do massacre de Virginia Tech, onde o assassino preparou suas própria publicidade antes mesmo de cometer a carnificina de 32 pessoas. Numa sociedade materialista ao extremos, casos como esses não podem se tornar fenômenos da moda, atesta a escritora. Polêmico, é uma palavra que resume o livro de Lionel Shriver, pela tragédia familiar, pelo horror dos massacres adolescentes e o triste retrato que costumeiramente ocorre nos EUA, mas que, como uma praga, se espalha pelo planeta.
A autora enfoca nas epístolas a relação entre características inatas e experiências pessoais na determinação do caráter e do comportamento e a história do livro liga a possibilidade da mãe que não queria engravidar, cheia de dúvidas para lidar com a maternidade ter influenciado o desenvolvimento psicótico de Kevin. Shriver explora o drama expondo para seus leitores reflexões sobre as possíveis facetas de problemas comuns como o casamento e a carreira, a maternidade, a união familiar, e o conflito atual dentro de nossa cultura contemporânea que está produzindo violência entre os jovens, como por exemplo os pitboys tupiniquins e os assassinos em série.
O livro é perturbador desde a capa e com o filme teremos uma visualização à altura de quanto a história impressiona. Vale a leitura com certeza.
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