Maurício de Almeida é autor de “Beijando Dentes” (Record, 2008), vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2007 na categoria contos, e do romance “A Instrução da Noite” (Rocco, 2016), vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura 2017 na categoria melhor livro do ano estreante até de 40 anos. Fizemos quatro perguntas ao escritor. Confira abaixo:
1) Num romance em que o enredo, a ação, é construída pela própria linguagem e seus meandros ou sombras como foi pensar tanto a figura do narrador quanto do pai?
Pensei os personagens e as situações como representações passíveis à interpretação do narrador. Dessa forma, durante a leitura, além da interpretação do leitor, o narrador também se dedica a compreender o que acontece e agir a partir da leitura dele dos fatos e personagens.
Por isso, embora seja um romance em primeira pessoa, tentei me dedicar menos à descrição das situações pelo narrador e mais ao esforço de compreensão e significação dos acontecimentos. Interessa ao narrador mais a interpretação do que a ação, o significado do que a descrição. Consequentemente, os desdobramentos são mais íntimos do que externos. Assim procede o narrador de “A Instrução da Noite”.
Nessa chave, os personagens assumem papéis a partir da visão e entendimento do narrador. A construção do pai, então, está ancorada em uma dubiedade: ao narrador, o pai – e o retorno do pai – representa um potencial alívio ao peso da ausência decenária daquele homem e, ao mesmo tempo, representa uma potencial negação dessa possibilidade, isto é, a presença do pai poderá confirmar que esse alívio é impossível.
A linguagem deveria dar conta desses processos do narrador, mas não poderia soar esquemática e, ainda, deveria implicar sensações. Então, tentei não criar representações estáticas, como a dubiedade do pai, e uma linguagem que acompanhasse a progressão das conclusões às quais chega o narrador, utilizando, por exemplo, o ritmo progressivamente mais acelerado (sentenças maiores, pouca pontuação) na medida em que confronta (ou é confrontado) pelo pai.
2) Ele tem como escuta a irmã Teresa, que partiu da casa talvez por uma recusa em autenticar a ausência do pai. Mas a voz dele de uma certa forma dá contornos a representação da figura do pai. Em que processos, pelo silêncio de Teresa na sua ausência ou a fala do narrador, o pai estaria mais assimilado?
Se a proposta do projeto do livro se concretizou tal qual expus na resposta anterior, a construção de Teresa também deverá ter uma dubiedade profunda. Ao narrador, a irmã representa tanto a libertação quanto o abandono. Por isso, ao mesmo tempo em que a inveja, ele também a maldiz, a força com a qual a idolatra é a mesma com a qual a repreende.
Teresa representa uma dubiedade insuperável, diferente do pai. Pois, se a dúvida em relação ao pai pode ser sanada (e será, uma vez que se trata do conflito que movimenta o enredo), a relação com Teresa permanecerá ancorada nessa oscilação, que, afinal, representa a própria oscilação do narrador para com o que deseja, a “liberdade”.
Encerrando o rol de personagens, ainda restam a mãe e a esposa do narrador. Junto a ele, as duas compõem aqueles que ficaram (em detrimento a Teresa e ao pai, que partiram). Nessa proposta, representam a paralisia e a sujeição (a mãe) e a marginalização e o não pertencimento (a esposa). Ou seja, a partir do narrador, todos assumem algum significado para ele, que os interpreta ou lê a partir do drama que vivencia: o retorno do pai e a iminência de resolução de um impasse que só pode ser glorioso ou desastroso.
Dessa forma, considero uma questão em aberto se o pai estaria melhor representado no silêncio/ausência de Teresa ou nas palavras/permanência do narrador. Há necessariamente uma relação entre esses elementos – o personagem se apavora ao ter de lidar com a liberdade (representada por Teresa) que o retorno do pai poderá proporcionar e também não suporta mais o abandono (representado por Teresa) que a chegada do pai poderá representar caso ele opte por partir novamente.
Mas creio ser possível fazer outras triangulações e encontrar outras camadas de relações entre os personagens que atravessam o narrador e as tentativas dele de entendimento do que acontece nesse momento extremo que vive durante a história.
3) A densidade dos personagens não está no seu corpo, nos elementos descritivos (de perfis), mas sim nas frases, nas orações, no fluxo de pensamento do narrador. Como é dar densidade a personagens através do discurso narrativo que faz para eles?
Sempre digo que a voz narrativa de “A Instrução da Noite” é em primeiríssima pessoa. A razão dessa escolha se deu justamente pelo viés que acreditei ser o mais potente à história – me interessava pouco descrever ações propriamente ditas (ou caracterizar os personagens), pois acreditava que a interpretação ou impacto das situações mínimas poderiam desencadear coisas mais fortes a um narrador tão suscetível. Dessa forma, optei por um narrador que se dedicasse ao entendimento (ou, ao menos, se dispusesse ao risco de não compreensão) daquilo que está acontecendo, como se tentasse compreender o que tais ou quais situações podem representar a ele.
Penso que a densidade desse procedimento esteja em explicitar e aprofundar o impacto de situações mínimas, que, no entanto, desencadeiam terremotos no narrador. Um garfo cai no chão durante o almoço; o narrador se abaixa e vê, sob a mesa, os sapatos do pai. Essa é uma situação que serve ao narrador para pensar quem é aquele homem que tanto idealiza e tenta identificar, a partir da disposição física deles dois nesse momento (o pai altivo e sentado, o filho abaixado ao chão), o tamanho da desproporcionalidade entre eles. É verdade que há inúmeras formas de explorar esse desequilíbrio, mas acreditei que esse expediente serviria ao narrador de “A Instrução da Noite” e a densidade viria de um processo interno do personagem e não o contrário.
O fluxo de pensamento, a utilização de metáforas e prosopopeias são alguns expedientes que serviram a esse narrador na medida em que se trata de um personagem solitário que precisa compreender e se comunicar – e a densidade talvez provenha das tentativas e da descoberta da incapacidade de compreender e comunicar.
4) Como você pensa este seu romance que está escrevendo em projeção ao “A Instrução da Noite”? Vai existir algum tipo de diálogo entre os dois?
Em linhas muito gerais, “Contudo, setembro” é um livro sobre dois irmãos com rotinas e vivências distintas que têm os caminhos distorcidos e são colocados em contato após uma situação limite aos dois.
Acredito que esse novo romance (ainda em finalização) componha um díptico com “A Instrução da Noite”. Apesar de alguns pontos de contato, como relações familiares e o embate entre idealização e realidade, penso que o novo trabalho seja uma resposta ao anterior na medida em que a vida não se estagna como se encerra “A Instrução da Noite”. Por isso, se a imagem central para o entendimento de “A Instrução da Noite” é uma porta fechada, o novo romance parte da seguinte questão: a porta não permanecerá fechada indefinidamente, então, o que fazer com a liberdade da porta aberta? Como encarar a vida?
Em termos formais e de organização de ações e personagens, ao contrário de “A Instrução da Noite”, no qual as ações são intensamente internas, “Contudo, setembro” extrapola esse limite e coloca os personagens no mundo, explorando não só a perspectiva íntima dos personagens (como entendem e interpretam as coisas que lhes acontecem), mas também as consequências externas dos demais.
Se uma colher ao chão denuncia a desproporção entre personagens, o que significa aos dois essa desproporção? Pretendo que esse movimento dê margem não apenas à leitura de um personagem do fato, mas que os personagens descubram e compreendam como essa leitura (e consequente reações) têm implicações nos demais.